sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Embelezar não é preciso arte é preciso


A Estrela(1996), escultura de Amilcar de Castro foi transferida do Largo das Artes, região central do Rio de Janeiro, para o final do Leblon num momento de intenso processo de reestruturação da cidade. A mudança para a orla do Leblon, um dos cartões postais da cidade, já é por si mesma questionável. Entretanto, chama a atenção o local onde a escultura foi colocada: um dos canteiros centrais que dividem as duas pistas da orla da praia. Estreito e alto, esse espaço inacessível funciona como um pedestal para a escultura. Ali, o pedestal/canteiro engendra uma espécie de espaço ideal delimitador entre o público e a obra, provocando algumas questões sobre a nova moradia da escultura. As obras de Amilcar de Castro e do movimento neoconcretista , do qual Amilcar foi um dos expoentes, não se propunham a libertar a linguagem de arte das molduras da pintura e dos pedestais da escultura? Não se tratava de superar a histórica relação de figura/fundo na arte de modo que as formas e as cores misturassem-se ao fundo, entendido nessa concepção como o próprio mundo? Enfim, não se buscava repensar as hierarquias da relação da arte com a vida?



Em sua atual localização, “A Estrela” não é acessível a um contato mais direto com eventuais passantes desta via pública, o que coloca em xeque outro importante pressuposto das obras de Amilcar: a vivência entre o espectador e a obra. Sem retomar toda a história do movimento neoconcretista, vale a pena lembrar que esses artistas buscavam construir uma nova arte a partir das premissas perceptivas e fenomenológicas que respondessem à necessidade de estabelecer relações outras com a obra, com espaço em torno e com o espectador. O não-objeto neoconcreto deseja funcionar no tempo atual sendo atualizado somente na presença do espectador, do participante. Em “A Estrela” é preciso um giro circular em torno da obra, que dura o tempo necessário para a compreensão do tempo instaurado. Em outras palavras, é imprescindível experimentar o trabalho com o próprio corpo para a produção de significados. Mas quem vai se arriscar a subir no exíguo e alto espaço do canteiro?

No final do Leblon, a escultura de Amilcar oferece na melhor das hipóteses a possibilidade de contemplação de uma obra de arte autônoma , concepção com a qual Amilcar e seus pares do movimento neoconcretas romperam. Digo melhor, porque no atual regime a partir do qual a paisagem carioca vem sendo reconstruída, esta escultura de Amilcar corre o risco de se tornar mais uma imagem no intenso fluxo informacional/imagético constitutivo das urbes na era do espetáculo e do turismo cultural. Cidades como o Rio de Janeiro vêm sofrendo um agressivo processo especulativo do solo urbano. Nelas, o espaço torna-se cada vez mais abstrato e homogêneo por ser manipulado, controlado e trocado como mercadoria de altíssimo valor econômico. Na esteira de tal dinâmica são elaboradas e implementadas políticas de revitalização e de embelezamento da cidade tanto pelo poder público como por interesses privados. Como observou a teórica Rosalyn Deutsche sobre situação semelhante em Nova York na segunda metade da década de 1980 , a retórica do embelezamento e revitalização pode ser entendia como estratégias de construção de imagem de uma cidade integrada, totalizada e coerente, escamoteando os sem números de conflitos e interesses políticos e econômicos existentes nos processos urbanos.




Na atual situação das cidades, a noção mesma de arte pública exige reflexão. É possível esquecer todas as complexas camadas de significações físicas e culturais, os conflitos políticos subsumidos em um determinado espaço urbano? É aceitável o desconhecimento ao se escolher onde e como instalar um trabalho de arte nas cidades? Em localizações em que as obras respeitem as propostas originais, trabalhos como a escultura “A Estrela” de Amilcar de Castro e de tantos outros artistas contemporâneos são capazes de provocar experiências, despertar os habitantes das cidades sobre relação com o espaço, o entorno, com o mundo. Nesse sentido, o pensamento e a reflexão de arte ainda têm algo a dizer ao sujeito contemporâneo sob o fascínio das imagens onipresentes e incapaz de estabelecer uma relação atual e concreta, enfim mais real e menos virtual, com o espaço em que vive.




1 A teoria do não-objeto foi formulada por Ferreira Gullar na tentativa de definir o objeto de arte neoconcreta. De acordo com o crítico,  o não-objeto não é um objeto negativo, nem antiobjeto, “mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência”.
2  O conceito de arte autônoma surge junto com o projeto da modernidade, formulado no século XVIII, segundo o qual os filósofos iluministas pressupunham um campo da ciência objetiva, uma moralidade e leis universais e uma estética autônoma. Nessa concepção a arte possui leis próprias e não dependi de nenhuma outra atividade ou valor que não sejam os seus próprios, possuindo a finalidade nela mesma.


3 DEUTSCHE, Rosalyn. Uneven Development: Public Art in New York City. In October. Vol 47. (Winter, 1988). Pp.3-2



 As fotos foram retiradas de: http://m.jb.com.br/fotos-e-videos/galeria/2012/09/15/escultura-enfeita-orla-do-leblon/

Arte contemporânea em suas novas dimensões


Obras gigantescas. Museus e centros culturais colossais em diferentes partes do globo. Arquiteturas institucionais que chegam a rivalizar com a própria obra, afirmam- se como marcos, um gênero de arte per si. Monumentais, tais espaços terminam condicionando as propostas de arte em grandes formatos. Ao mesmo tempo, cresce o número de importantes colecionadores que constroem fundações próprias, multiplicando os espaços disponíveis para trabalhos de grande porte. Nesse processo de relações cada vez mais promíscuas entre a arte e a indústria milionária do entretenimento o alvo é um público novo. Ávida por informação e por surpresa, essa audiência engrossa as filas dos templos de consumo de arte. Mas fica a indagação: qual o alcance das crescentes demandas de espetacularização da experiência estética na opção de escalas e tamanhos da produção contemporânea? O que trabalhos igualmente monumentais como Promenade de Richard Serra (2008), Leviathan (2011) de Anish Kapoor, ambos no Grand Palais, de Paris, teriam a falar sobre esse momento?


A espetacularização da arte- O início do século XXI sinaliza um novo estado de coisas para a arte. A sociedade do espetáculo antevista por Guy Debord na década de 60 é uma realidade. A lógica econômica que transforma todas as esferas da vida em mercadoria, aprofunda sua interferência na experiência estética da arte. É justamente no espaço, essa dimensão política por excelência, que tal controle afirma-se mais intensamente. Em um processo incessante de abstratificação do espaço do espaço como mercadoria, as escalas e tamanhos das megalópoles, dos museus e das obras se agigantam. “Cidades genéricas”, na definição do arquiteto Rem Koolhaas, tais lugares poderiam ser pensados como manchas urbanas sem qualidades específicas e de escalas desproporcionais, o que ele chamou de “bigness”



Mapear a própria posição ou totalidade urbana em tal situação constitui tarefa vã. Aqui, os museus e centros de arte conhecem inéditas funções políticas. Em escalas monumentais, a instituição-museu afirma-se como marcos. Assume o papel de estruturador da política cultural da cidade. Altamente lucrativos, os museus são engrenagens indispensáveis para indústria do lazer e turismo. Construídos com arquiteturas grandiosas, envoltas em camadas de informações, assinaturas e grifes, tais projetos reforçam a excitação dos sentidos e o divertimento do espectador. Menos relações com objetos e mais funcionando com bancos de dados, os museus precisam de diretores e curadores que trabalhem no sentido de desespacializá-los e temporalizá-los, criando narrativas e encenações sedutoras. O evento substitui a obra.

Nesse contexto, surge um público com novas demandas e expectativas em relação à arte. A perda de experiência física vivida nas cidades de paisagem e arquitetura cenográficas produz uma espécie de sujeito descorporificado, bombardeado por estímulos visuais e roubado em sua temporalidade. Homens e mulheres das urbes virtuais experimentam um estado crônico de amnésia e de desatenção . Potencialmente, esta é a nova audiência curiosa e desejosa de estímulo para seu tempo livre. Para esse espectador, trabalhos com grande impacto visual capturam a atenção e a possibilidade de extrair uma “experiência” seguida da expressão “curti!”.


Obras com tais dimensões são particularmente cobiçadas pelo mercado de arte atual. Em momento de expansão, o enorme fluxo de capital vindo principalmente das economias emergentes multiplica o número de colecionadores e o surgimento de novos centros de arte. Em Moscou, The Garage Center for Contemporary Culture, Nos Emirados Árabes, Guggenheim Adu Dhahi, para não mencionar os duzentos centros de arte criados ano passado na China. Na mesma proporção, aumentam os espaços expositivos privados para instalações e grandes obras. Recentemente, o colecionador bilionário François Pinault, dono do império que inclui entre outras a Christie’s, Gucci, Yves Saint Laurent inaugurou sua fundação de arte em Veneza com a suntuosidade e ambição de quem sabe capitanear as relações entre arte e a indústria da moda e do entretenimento. Ainda na tendência de exposições histriônicas, Bienais como a de Veneza, ao determinar imensos pavilhões para representações de países, acabam impondo os tamanhos e escalas às propostas dos artistas. Mas quanto da produção atual não sucumbiu ao canto das sereias da arte como espetáculo?

Escalas e tamanhos, o adensamento do lugar. Igualmente monumentais, os atuais trabalhos de Richard Serra, Anish Kapoor, para citar alguns, inscrevem-se na linguagem de arte contemporânea que intervém criticamente no espaço expositivo. Tensionam as paredes, o teto, o chão, as enormes dimensões da arquitetura dos novos museus e galerias. Incorporando o espaço institucional aos próprios trabalhos, atuam politicamente contra o poder de neutralização e esvaziamento da arte promovido pelo seu sistema.

Em 2008, Richard Serra realiza a escultura Promenade, no Grand Palais de Paris. Tirando partido da sensação de leveza sugerida ao corpo ao entrar nessa grandiosa construção de ferro e vidro, o artista propõe ao espectador repensar sua relação com o espaço público. As cinco placas de ferro de 17 metros de altura e 4 de largura com o eixo de inclinação em tensão com as sacadas de 13 metros de altura revelam um objetivo bastante preciso: trazer a escala do local para dentro do trabalho, convidando o visitante a apropriar-se do espaço. Seguindo semelhante estratégia, a escultura faz uso do eixo central do edifício como referência; instala as cinco placas em distância e ritmos calculados para provocar uma ilusão de ótica no espectador, causando a impressão de haver um desequilíbrio entre elas. Aqui, a sensação é de vertigem, como se por átimos de segundo abandonássemos nossa existência desrealizada e com uma simples caminhada prazerosa (promenade) fossemos levados a reaprender o mundo.

No mesmo Grand Palais, Anish Kapoor constrói Leviathan, em 2011. Essa grandiloquente estrutura inflável de 35 metros de altura e 120 de comprimento produz estranhamento e desconforto no espectador ao obstruir o espaço expositivo. Por outro lado, o aumento de muitas vezes da escala do espectador junto ao objeto produz um efeito de projeção na obra, de identificação com os delimites espaciais da obra. Em frente à Leviathan experimentamos uma interrupção na percepção, vivemos uma suspensão temporária, quando somos interrogados: “onde estou?” Tal qual a Alice de Lewis Carroll, por instantes nossas certezas sobre a realidade e a ilusão parecem vacilar. Esse parece ser o sentido mais urgentes das obras que lançam mão dos recursos de escalas e tamanhos gigantescos: nos convocar a reaprender o espaço real, a duvidar da zona nebulosa entre a realidade e a ilusão de uma existência cada vez mais virtual.


Martha Telles