quinta-feira, 31 de março de 2011

O peso do mercado secundário no processo de formação de valores artísticos no sistema das artes – o exemplo da Sotheby’s

 por Ana Letícia Fialho


Antes de passarmos ao relato da primeira mesa, gostaríamos de abordar algumas questões que, do ponto de vista editorial, contextualizam esta primeira parceria entre a SP Arte e o Fórum Permanente. Entre seus objetivos estão o aumento da visibilidade do Programa Cultural da SP Arte, a sua divulgação através da plataforma Fórum Permanente, a transmissão ao vivo de sua programação, o registro, arquivo e publicação do conteúdo dos debates em vídeo, assim como a elaboração de uma reflexão crítica sobre esse conteúdo através da publicação de relatos críticos.

Para o Fórum Permanente, as discussões travadas pelo mercado e sobre o mesmo interessam pois entendemos o mercado como uma instância fundamental do sistema das artes, intrinsecamente vinculada aos processos de construção de valor, visibilidade e reconhecimento da produção contemporânea.[1]

No Brasil, a SP Arte se consolidou como evento importante do calendário das artes, com crescente projeção internacional. Do ponto de vista comercial, a feira é um sucesso e seus resultados, a cada ano, são mais significativos tanto em relação à participação de importantes galerias e colecionadores quanto em relação à repercussão alcançada e ao volume de vendas[2].

Cabe pensar, no entanto, qual a razão e a relevância de uma feira de arte bem sucedida investir em um programa cultural, com mesas de debates envolvendo especialistas do campo das artes e convidados internacionais.


O Programa Cultural da SP Arte foi instituído já na primeira edição da feira, em 2005, e, desde então, vários temas foram tratados: a relação entre arte pública e arquitetura, o mercado editorial de arte, orientações para manutenção e restauro de obras contemporâneas, o poder da imagem, a estrutura da cor, entre vários outros (a programação completa encontra-se no site: www.sp-arte.com/evento/programacaocultural)[3].


As mesas relacionadas ao mercado e ao colecionismo público e privado têm tido destaque. Assim, a programação contribui para a formação de um público específico: os novos colecionadores ou colecionadores potenciais, aqueles que, embora tenham recursos para investir, não estão familiarizados com o funcionamento do mercado e, portanto, buscam informações que possam garantir um acesso seguro ao investimento em artes[4]. Os debates também oferecem uma oportunidade singular para quem simplesmente deseja compreender melhor o opaco funcionamento do mercado e de campos a ele relacionados[5].


A consolidação de um mercado de arte e a expansão dos investimentos e do número de colecionadores fortalecem o sistema das artes como um todo e também a sua projeção internacional.


Acreditamos que a discussão sobre a formação dos valores e dos instrumentos de avaliação e negociação, tema da primeira mesa do programa cultural da SP arte de 2010, podem contribuir, de forma significativa, para esse processo.

Quanto vale? Um olhar sobre arte e design contemporâneo e latino-americano, teve a participação de Maria Bonta, Vice-presidente e diretora da Sotheby’s na América Latina, e Gabriela Palmieri, especialista em arte contemporânea e diretora de Day Sales do Departamento de Arte Contemporânea da Sotheby’s, e mediação de Ana Letícia Fialho, do Fórum Permanente. O objetivo, já indicado no título, era discutir a formação de valores dos produtos negociados pela tradicional casa de leilões com um foco particular no design do século XX e arte latino-americana e contemporânea.


Ainda antes de entrarmos na discussão de algumas questões interessantes que surgiram durante o debate, talvez seja útil apresentarmos um breve histórico da Sotheby’s, para que se entenda melhor o lugar de fala das palestrantes dessa mesa.

Sotheby’s é uma das mais importantes casas de leilões no mundo. Fundada em 1744, seu espectro de atuação é amplo, desde a venda de livros, origem de seu negócio, passando por imóveis de luxo, vinhos, armas de caça, e todas as áreas de artes visuais e decoração.

Os departamentos de arte são especializados, mas as categorias não seguem exatamente recortes da história da arte e podem ter como base tanto critérios geopolíticos e históricos quanto estéticos, ou ambos, tais como “arte contemporânea” (que para eles vai do período pós-segunda guerra até hoje), “arte latino-americana” (compreende mais de 500 anos, iniciando-se com os artistas viajantes até a produção contemporânea), “arte asiática contemporânea”, “arte britânica do século XX”, entre muitas outras[6].

As sedes principais da Sotheby’s ficam em Nova York e Londres, mas a casa de leilões tem escritórios e representantes em todos os continentes, em mais de 100 cidades. As principais vendas de arte contemporânea se fazem em Nova York (maio e novembro) e em Londres (fevereiro e junho), alguns leilões são feitos em Paris e Milão, e, às vezes, os lotes são expostos em diferentes sedes antes da realização dos mais importantes leilões. Já os leilões do Departamento de Arte Latino-americana acontecem em Nova York (maio e novembro)[7].


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São raras as ocasiões em que se discute abertamente o processo de construção de valores no mundo das artes. Geralmente, faz parte do jogo do mercado não revelar as determinantes que levam uma obra a atingir um valor X, ou um artista a se tornar um sucesso de vendas. No mercado primário, onde as obras são negociadas pela primeira vez, não se costuma falar com clareza como são definidos os preços, e em raras ocasiões se anuncia (e nunca em alta voz) o valor do resultado de uma venda[8]. Já as casas de leilões, que pertencem ao mercado secundário, ao contrário, publicam suas estimativas de preços e resultados de vendas, o que as torna um “bom parâmetro visual e público do que está acontecendo no mercado, e, portanto, um espaço interessante de aprendizado”, como apontou Gabriela Palmieri.

Maria Bonta, iniciou sua fala dirigindo-se a quem deseja começar ou aprimorar uma coleção:

“A idéia é informar vocês sobre como nós, casas de leilões, avaliamos e procedemos em relação às peças que vendemos e o que deve ser levado em consideração por quem tem interesse em comprar, assim, vocês podem ir à feira, levando essas informações consigo, e decidir o que gostariam de adquirir e avaliar o que gostariam de adquirir e, quem sabe, começar uma coleção, o que seria ótimo.”[9]

Em seguida, mostrou alguns gráficos que permitem ver a evolução dos resultados de vendas da Sotheby’s, entre 1995 e 2008, indicando um crescimento quase linear do volume de vendas, com uma queda em 2008, naturalmente, devido à crise econômica internacional. Comenta rapidamente que tanto o Departamento de Design quanto o de Arte Latino-americana têm números pouco significativos se comparados aos resultados do Departamento de Arte Contemporânea[10], tema ao qual voltaremos mais adiante.


Bonta deu exemplos de objetos de design que atingiram valores importantes, entre eles uma poltrona dos irmãos Campana, e enfatiza a qualidade estética das escolhas: “Sotheby’s busca sempre as melhores peças.” E o design que melhor funciona é o que se aproxima de uma obra de arte, e que pode funcionar como uma escultura. Afinal, os colecionadores de design são também, em grande parte, colecionadores de arte contemporânea, o que caracteriza o chamado “crossmarket”, ou seja, o mercado cruzado, prática que possibilita se trabalhar com um mesmo catálogo de clientes para diversos mercados ou nichos de mercado.

Do design, a palestrante passou então a exemplos do Departamento de Arte Latino-americana em que as peças negociadas cobrem um período de mais de 500 anos, com os artistas viajantes, passando pela arte colonial, o modernismo até a produção contemporânea.


Essa ampla abrangência do departamento indica que o mesmo trabalha tanto com temas relacionados à América Latina quanto com sua produção. A America Latina é um nicho de mercado regional e não global e, por isso, interessa a colecionadores que, de alguma forma, têm vínculos com o continente. Os destaques do departamento, em relação a valores negociados, permanecem em grande parte com os mexicanos que estão também na origem da criação do departamento, em 1977.


Em relação aos critérios de escolha e valoração das obras, Maria Bonta lembrou que, além da qualidade das peças, deve-se levar em conta a sua procedência, a sua história, o seu tamanho, a técnica, o tema e fatores mediáticos ou de moda. A consagração de Frida Kahlo, por exemplo, não pode ser compreendida sem se levar em conta a repercussão do interesse de Madonna e de Holywood pela artista[11]. Citou ainda outros exemplos de artistas contemplados pelos leilões do departamento: Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antônio Bandeira, Rubens Gershmann, Gego, Doris Salcedo e Sergio Camargo[12]. A primeira pergunta que surgiu no debate se refere justamente a certo incômodo de ver artistas contemporâneos como Helio Oiticica ou Doris Salcedo num leilão de arte latino-americana e não de arte contemporânea: “O que determina o up grade de um artista do Departamento de Arte Latino-americana para o Departamento de Arte Contemporânea?”

O autor da pergunta tem razão em falar de up grade, afinal, o Departamento de Arte Contemporânea é mais importante e tem muito mais prestígio que o Departamento de Arte Latino-americana.

Embora não assumida pela Sotheby’s como tal, a hierarquia existe e é definida basicamente pelo volume de vendas e valores negociados. Enquanto 1 milhão de dólares é um valor extraordinário para o Departamento de Arte Latino-americana, ele é quase irrisório para o Departamento de Arte Contemporânea em que recordes para uma única obra chegam a mais de 70 milhões de dólares. Ainda que ambos os departamentos atuem no plano internacional, o mercado de arte contemporânea é globalizado e lida com nomes reconhecidos globalmente que atingem facilmente valores acima de oito dígitos, enquanto o Departamento de Arte Latino-americana, apesar de internacional, lida, em grande parte, com artistas que são frequentemente conhecidos apenas por especialistas e colecionadores que têm um interesse particular pela produção do continente latino-americano[13].

Gabriela Palmieri tem outro ponto de vista: “temos cuidado e evitamos dizer que nossas escolhas têm por base um perfil estético ou uma base estritamente regional, trata-se de arte, e não se trata de onde vem, ou quem é quem, não consideramos nacionalidades, só pensamos sobre qual o contexto de venda faz mais sentido.” De fato, para a Sotheby’s, a questão é simples: um artista não é encaminhado, a priori, para um departamento ou outro, muitos artistas participam de leilões em diferentes departamentos, como Vik Muniz (fotografia, arte contemporânea, arte latino-americana). O que orienta essa escolha é a definição de qual contexto é o mais favorável para que se alcance o melhor preço. No entanto, é preciso observar que os melhores preços são alcançados, via de regra, pelos artistas negociados no Departamento de Arte Contemporânea.

Palmieri trouxe exemplos de destaques nas vendas contemporâneas: A obra White Center (Yellow, Pink and Lavender on Rose), de Mark Rothko, que foi adquirido por David Rockfeller em 1960, alcançou 72.840.000 dólares, recorde do artista e para uma obra contemporânea em 2007. Tal exemplo mostra o impacto que a procedência de uma obra pode ter sobre o seu valor de mercado. Segundo a Sotheby’s, o fato de ter pertencido a Rockefeller impulsionou a disputa pela obra[14].


Outro exemplo dado por Palmieri foi o de Beatriz Milhazes, que alcançou um recorde de venda para um artista brasileiro contemporâneo em leilão no Day Sales do Departamento de Arte Contemporânea realizado em Nova York em 15 de maio de 2008: 900.000 dólares[15]. O proprietário teria contatado a Sotheby’s com o objetivo de negociar a obra de forma privada, por cerca de 300 mil dólares, e foi convencido pelo Departamento de Arte Contemporânea a colocar a obra em leilão com destaque no catálogo. 17 compradores de diferentes partes do mundo disputaram a obra, que foi comprada por um colecionador da Argentina. Atrás dele estavam um colecionador alemão e outro americano, o que deixa em evidência o caráter de fato globalizado desse tipo de mercado.

Outro exemplo emblemático dado por Palmieri foi o leilão organizado por Damien Hirst em parceria com a Sotheby’s, um caso singular em que a casa de leilões funciona como uma galeria/agente de vendas do mercado primário e coloca o artista em contato direto com o mercado[16].

Ela retomou, ao final, as regras básicas que um colecionador deve considerar para decidir o que e como colecionar: qualidade, raridade, proveniência, histórico da obra e currículo do artista. Ademais, falou da importância, para o colecionador, de buscar formas de se familiarizar com o mercado (freqüentar museus, feiras e galerias, acompanhar publicações especializadas, fazer pesquisa de preços) e também considerar a importância de estabelecer os seus próprios parâmetros: “o colecionador deve ter em mente alguns critérios pessoais: se tem preferência por aspectos estéticos ou conceituais, por obras bidimensionais ou tridimensionais, por um determinado movimento ou período histórico” e assim por diante. Sugeriu ainda que se busque orientação profissional: art advisors – consultores que podem orientar e pesquisar obras – e as próprias casas de leilões: “nós somos especialistas, podemos orientar e aconselhar”. Finalizou indicando os Day Sales do Departamento de Arte Contemporânea da Sotheby’s como um ótimo lugar para quem deseja iniciar-se no mercado: “Day Sales são ótimas oportunidades, neles encontram-se artistas jovens e em meio de carreira, trabalhamos com várias faixas de preços, e há uma grande diversidade de obras, negociando-se, em média, 300 lotes por leilão.”

Ao que tudo indica, o interesse de casas de leilões como a Sotheby’s pela América Latina e pelo Brasil, em particular, não está apenas focado na busca de mercadorias a serem negociadas, mas também na possibilidade de ampliar o seu catálogo de clientes.

Para Hans Belting, as casas de leilões, com suas novas filiais e escritórios, se tornaram o mais importante agente da virada global, atraindo uma clientela de países sem uma tradição em colecionismo. Por se tratar de vendas públicas, atraem investidores novos sem experiência no campo das artes, permitindo, assim, uma verdadeira globalização da arte através do mercado.[17]

Sem dúvida, as casas de leilões são um agente importante do mercado, suas operações são altamente midiatizadas, e seus resultados têm um impacto importante na definição de valores e tendências. Elas podem funcionar como um termômetro, indicando como está o mercado em um determinado momento. Mas o mercado secundário, ao qual pertencem as casas de leilões, representa apenas uma pequena fatia do mercado, havendo uma diversidade e um volume de operações muito maiores fora dele.

Como esclareceu Maria Ponza a um artista que perguntou como fazer para um dia participar de leilões: “para que uma obra entre em leilão, por regra, é preciso que se tenha certeza de que duas ou três pessoas estarão dispostas a disputá-la. Um objeto que interessará apenas um colecionador não entra em leilão, é negociado de outra forma. O que entra em leilão é aquilo que é capaz de atrair uma larga audiência, trata-se de um mercado de massa. Os leilões não são o lugar adequado para artistas iniciantes, as casas de leilões observam as exposições, as feiras, o que mostram as galerias, um leilão traz obras que já foram vistas ou que pertenceram a alguma coleção de renome.” Ou seja, encontram-se nos leilões mais respeitados obras de artistas que gozam de reconhecimento e que têm certo valor garantido de mercado.

Para concluir, poderíamos resgatar uma provocação de Thomas McEvely, de 1991, e ainda extremamente atual, sobretudo se pensarmos em fenômenos como a parceria firmada entre Damien Hirst e Sotheby’s em 2008:  “The problem is no longer that art works will end up as commodities, but that they will start out as such”[18].


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[1] O Fórum Permanente fez a cobertura de parte da programação da ARCO 2007, dedicada ao Brasil; também, abordou o tema em outras ocasiões.

2] Em sua sexta edição, a SP Arte ocupou o dobro do espaço de sua primeira edição, teve a participação de 80 galerias, a maior participação de galerias internacionais desde sua criação, e um resultado de vendas que supera em 30% a edição anterior, chegando a mais de 15 milhões de dólares. Cf. “SP Art: Balanço”, publicado em 10 de maio de 2010, em Formas & Meios, http://formasemeios.blogs.sapo.pt/846743.html, último acesso em 20/06/2010.

Um obstáculo ao crescimento do mercado brasileiro, no entanto, é a inexistência de um regime fiscal favorável, como bem observou Maria Ponza. De fato, o Brasil não oferece nenhum befefício para quem investe em arte, e existem muitos entraves para a exportação e importação de obras de arte, ao contrário de países como Inglaterra e Suíça, que têm mercados extremamente fortes e muitos benéficos para os investidores.

[3] Outras feiras internacionais importantes, como Frieze, Basel e ARCO, também mantêm um extenso programa de debates e atividades culturais.

[4] Em muitos casos, buscam também adquirir o que Pierre Bourdieu chamou de capital simbólico, ou seja, o domínio de certos códigos sociais necessários para fazer parte de um jogo em que as regras raramente são enunciadas claramente e, por isso mesmo, conferem certa distinção a quem as conhece.

[5] Os temas das outras mesas da programação deste ano também dialogaram, ainda que indiretamente, com o mercado: as práticas curatoriais desenvolvidas fora do ambiente institucional com a participação de Jacob Fabricius, curador da Konsthall de Malmö, e mediação de Martin Grossamann foram tema da segunda mesa; as políticas de investimento em arte latino-americana pelo MUSAC foi o tema do segundo dia da programação; e Adriana Varejão, uma das artistas contemporâneas que mais se destacam no mercado, encerrou a programação.

[6] Algumas categorias surgem e desaparecem segundo tendências da moda e do mercado, outras permanecem estáveis por muitas décadas, embora parte das obras e de artistas que, em determinado momento, estiveram na moda e atingiram altos valores possam cair no esquecimento décadas mais tarde.

[7] Os catálogos dos leilões, assim como os resultados de vendas, podem ser consultados no site da Sotheby’s: www.sothebys.com

[8] Existe também certa resistência, da parte dos agentes de outras instâncias do sistema das artes, em discutir valores de mercado como se o valor comercial pudesse “contaminar” ou desvalorizar o seu valor simbólico. No entanto, o mercado participa, cada vez mais, na formação dos valores simbólicos da obra, e as esferas crítico-histórica e institucional participam também da construção dos valores de mercado. Por isso, acreditamos ser importante se discutir o processo de formação desses valores pelos diversos agentes do sistema das artes.

[9] Com essa fala, Bonta deixa claro que tal público-alvo interessa não só à feira, mas também à própria Sotheby’s, o que também será reforçado por Gabriela Palmieri mais tarde.

[10] De fato, o resultado do Leilão do Departamento de Arte Contemporânea que aconteceu em Londres em 28 e 29 de julho de 2010 movimentou 53.254.250 GP (ou 77.575.465 dólares). Já o último leilão do Departamento de Arte Latino-americana, realizado em Nova York em 27 e 28 de maio de 2010, teve um resultado de 16.777.050 dólares. Os resultados dos leilões podem ser consultados no site: www.sothebys.com

[11] As casas de leilões Sotheby’s e Christie’s tiveram um papel fundamental na valorização de Frida Kahlo cujos preços também se tornaram notícia e alavancaram o interesse pela artista para além do campo das artes.

[12] O recorde do artista num leilão internacional foi numa venda do Departamento de Arte Latino-americana da Sotheby’s em 18 de novembro de 2009: 1.350.000 dólares.

[13] Esta talvez seja a grande diferença que separa Helio Oiticica e Andy Wahrol: o preço. E preço tem a ver com reconhecimento e visibilidade. Warhol sabia disso, Damien Hirst sabe disso, e, não por acaso, fechou um dos mais incríveis negócios do mercado das artes no dia mesmo em que a crise econômica mundial era declarada com a falência dos Lehman Brothers.

[14] Do ponto de vista da sociologia da arte, pode-se compreender tal fato como uma tentativa de adquirir, com a obra, o capital social, a distinção de que gozava a família Rockefeller. Sobre o tema, duas referências importantes: Pierre Bourdieu, A distinção: crítica social do julgamento. São

Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007; e José Carlos Durand, Arte, privilégio e distinção. Artesplásticas, arquitetura e classedirigente no Brasil, 1855/1985. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1989.


[15] Valor de venda que, com o acréscimo da comissão da casa de leilões, também paga pelo comprador, chega a mais de 1 milhão de dólares, cifra mencionada amplamente na mídia brasileira, devido a seu ineditismo. Para uma artista contemporânea brasileira, de fato, tal valor marca um recorde, no entanto, para o mercado de arte contemporânea global, tal valor pode ser considerado pouco significante.

[16] Iniciativa de sucesso e marco da história recente do mercado de arte contemporânea, Hirst vendeu em dois dias (15 e 16 d setembro de 2008, em Londres) o equivalente a 111.464.800 GBP (162.370.774.16 dólares, de acordo com o conversor do site da Sotheby’s). Naquele mesmo dia, foi anunciada a falência da Lehmann Brothers, e deu-se início a mais recente crise econômica mundial. Conferir sobre o tema: Colin Gleadell, “Damien Hirst Skips the Midleman”, The Wall Street Journal, Arts & Enterteinment, September 17, 2008: http://online.wsj.com/article/NA_WSJ_PUB:SB122161315980646011.html, último acesso em 20/06/2010.

[17] Hans Belting, “Contemporary Art as Global Art”, in: Hans Belting e Andrea Buddensieg (org.), The Global Art World, Ostfildern, Hatje Cantz Verlag, 2009, p. 63.


[18] Thomas McEvelly, Art and Discontent: Theory at the Millenium, citado por Hans Belting, in: op. cit., p.65. Tradução livre: “O problema não é mais que as obras de arte terminem como commodities, e sim que elas comecem como tal.”

Mercado de artes: global e desigual

Por Ana Letícia Fialho



Dizer que artistas brasileiros estão cada vez mais valorizados nos circuitos internacionais não reflete a realidade

Têm-se falado muito em internacionalização da arte brasileira, em “Brazil for export”, em “conquista” do mercado internacional pelos artistas brasileiros1. Amigos perguntam-me a respeito da procedência de rumores sobre a “evasão” do que há de melhor na arte brasileira, que estaria indo parar em coleções no exterior.

Muitos galeristas que tenho encontrado, em feiras e outros eventos internacionais, insistem sobre a crescente presença dos artistas que eles representam no exterior. Algumas galerias já nascem priorizando a participação em eventos internacionais: Maria Baró, sócia da Galeria Baró Cruz, declarou que a prioridade da nova galeria é o circuito internacional (“Folha de S. Paulo”, 24/05/04).

Cabe observar, entretanto, que a entrada no circuitos das feiras exige um forte investimento. Somente o aluguel de um estande no Armory Show de Nova York, em 2004, custava de entre US$ 7.950 a 42.000. Facilmente esses valores duplicam, considerando-se o custo de transporte e o seguro das obras.

O retorno financeiro para este tipo de investimento não é imediato. Fabio Cimino, da Galeria Brito Cimino, disse que levou mais de três anos para começar a conquistar uma clientela em Basel, a mais prestigiosa e internacional das feiras (entrevista em São Paulo, fevereiro de 2003). Mais acessíveis, as feiras internacionais semi-profissionais atraem galerias menores, porém pouco podem oferecer em termos de visibilidade e de negócios.

No atual cenário de proliferação de eventos e de circulação intensa, qual seria a real inserção da arte brasileira nos circuitos internacionais? Esse foi o ponto de partida da minha tese de doutorado2. Embora o tema tenha muitos aspectos interessantes, como a inserção institucional dos artistas (participação em exposições e coleções de museus), o intercâmbio institucional (entre museus, curadores e técnicos), a presença brasileira na mídia e no mercado editorial (publicações sobre arte brasileira e de textos de especialistas brasileiros publicados no exterior), neste artigo, darei especial atenção à questão do mercado.


Considerando as dificuldades na obtenção de dados confiáveis sobre o mercado das artes -onde o sigilo faz parte das regras do jogo, seja a fim de manter a “aura” dos objetos e das reputações ou por razões de evasão fiscal- limitar-me-ei a questionar, a partir de resultados parciais de minha pesquisa de campo (entrevistas, encontros, análise de artigos, catálogos de vendas, visitas a feiras e galerias, estudo de indicadores etc.), algumas idéias que têm sido repetidas por parte da mídia e agentes culturais no Brasil, os quais, no meu entender, atribuem um valor excessivo ao que chamam de “mercado internacional”3 e, às vezes, em razão disso, superdimensionam a presença da arte brasileira no exterior.

Gostaria de deixar claro, no entanto, que neste artigo não faço uma crítica ao processo de internacionalização dos sistemas das artes no Brasil -necessário e irreversível-, mas uma crítica aos freqüentes equívocos na forma como a internacionalização da produção artística do Brasil tem sido promovida e avaliada.

Muitos agentes se dispõem a pagar caro para participar de feiras e eventos internacionais e fazem concessões excessivas em relação ao seu conteúdo e forma4. O deslumbramento com o caráter “internacional” impede uma análise objetiva desses eventos. Uma revisão crítica dessas posturas se faz necessária a fim de evitar o risco da reprodução de estereótipos, importação/exportação de projetos de pouca qualidade, contratação de “experts internacionais” pouco qualificados, etc.

Entendo que dois fatores principais favorecem a confusão nas análises e estratégias:

O primeiro está associado à aceleração do processo de globalização, que tem provocado, efetivamente, uma maior circulação de pessoas, mercadorias e informações; e, sobretudo, uma alteração nas formas de representação social do espaço internacional5. Nesse contexto, a diversificação e a expansão do mapa das artes (bienais, feiras e outros eventos surgem a um ritmo impressionante e nos lugares mais diversos) podem dar a impressão de que o Brasil não só faz parte do circuito internacional, como também de que é nele que residem as melhores oportunidades, quando não a única alternativa.

O segundo fator é a falta de informação. De forma geral, pouco se sabe e muito se especula a respeito da inserção da arte brasileira nos circuitos internacionais. A inexistência de uma fonte centralizada de informações sobre a cotação, em termos econômicos e simbólicos, da arte brasileira acaba gerando uma miríade de informações fragmentadas, facilmente manipuláveis e que podem dar margem a erro.

Ainda que não exista um modelo ideal de avaliação do valor de obras e da reputação dos artistas6 -afinal todos os indicadores existentes contêm um certo grau de subjetividade e muitas limitações, eles permitem verificar a evolução das carreiras, as tendências estéticas, as oscilações de preços, a localização das obras etc.

Tal é o caso de um banco de dados como Artprice (maior banco de dados existente sobre o mercado de arte internacional), de um indicador como o “Kunst Compass” (publicado pela revista alemã Capital, traz a relação dos 100 artistas contemporâneos mais bem cotados no mercado internacional, não só em relação às vendas, mas em relação à participação em exposições, opinião de especialistas e número de publicações) ou de uma publicação como o “Top 200” da revista “Artnews” (lista anual que indica os maiores colecionadores do ano e suas preferências). Esse tipo de indicador tornou-se uma importante ferramenta para os agentes que operam no mercado internacional, sejam eles artistas, curadores, marchands ou colecionadores.

No Brasil, tende-se a interpretar eventos isolados -uma crítica em favor de um artista numa revista internacional, a participação numa exposição, a venda (ou a aceitação de uma doação) de uma obra a um museu- como um fenômeno mais amplo, que traduziria o reconhecimento da arte brasileira em nível internacional e sua conseqüente inserção no “mercado internacional”.

Na verdade, as críticas nem sempre são positivas, ou, se têm a intenção de sê-lo, muitas vezes, são superficiais -elaboradas por críticos que pouco ou nenhuma familiaridade têm com a historia da arte brasileira, acabam forçando analogias entre o artista que analisam e artistas internacionais consagrados7; as exposições nem sempre dão destaques aos artistas brasileiros e as obras adquiridas pelos museus internacionais vão, em muitas ocasiões, diretamente para os seus dépositos.

Os artistas brasileiros presentes no circuito internacional têm acesso limitado ao mercado internacional. No entanto a simples passagem pelo espaço internacional pode ser suficiente para inflacionar o seu valor no mercado nacional. Um caso que me chamou bastante a atenção foi de um artista de razoável reputação que estaria participando de uma importante exposição em Nova York, sobre a qual foi publicada uma matéria de página e meia em jornal de grande circulação de São Paulo. Em Nova York na época tentei localizar a galeria, tarefa que resultou infrutífera, esta pertencia a um circuito tão off que não estava listada em nenhum anuário, não possuía página na internet nem era conhecida no meio das galerias contemporâneas.

Isso tudo mostra que a inserção internacional da arte brasileira é, em muitos aspectos, ainda incipiente, muito embora o imaginário construído em torno dela tenha impactos significativos e reais sobre a configuração do sistema das artes no Brasil. A validação pelo espaço internacional tem impacto importante sobre as carreiras dos artistas (e de outros profissionais) e sobre o valor das obras; pertencer ao circuito internacional afeta tanto o capital simbólico8 (a reputação) quanto o capital econômico (valorização dos cachês, inflação dos preços das obras no mercado interno). Mas, de forma geral, os efeitos só podem ser observados em nível nacional.

A afirmação de que a arte brasileira está cada vez mais valorizada nos circuitos internacionais não reflete exatamente a realidade. Esse tipo de afirmação deve ser compreendido no contexto de estratégias de distinção, conceito de Pierre Bourdieu9 que pode ser estendido, a meu ver, às estratégias de marketing público (políticas de afirmação da cultura nacional) e privado (colecionadores e mecenas em busca de capital simbólico e econômico; empresas em busca de redução de custos de operações publicitárias através do mecenato; agentes do mercado em busca de lucro).

Eventos comemorativos, como a Mostra do Descobrimento e seus desdobramentos no plano internacional e sobretudo o Ano do Brasil na França, que iniciou em março de 2005, são eventos particularmente interessantes para esse tipo de análise e mereceriam uma avaliação objetiva de seus custos e benefícios para além dos discursos nacionalistas.

Tais estratégias de valorização do patrimônio nacional através da circulação internacional não constituem uma novidade nem são, em si, negativas; podem eventualmente servir para estimular a auto-estima nacional e dinamizar o setor cultural.

O problema surge quando o espaço internacional passa a ser priorizado nas estratégias de desenvolvimento das carreiras individuais, dos estabelecimentos comerciais e de instituições públicas, tomando como ponto de partida falsas premissas:


1) O mercado internacional estaria mais democrático?


Se, por um lado, o processo de internacionalização representa uma boa oportunidade para os países que, até recentemente, ficaram à margem dos circuitos da arte contemporânea, como o Brasil; por outro, esta passagem do local ao global não é imediata, e as condições de concorrência são extremamente desiguais. Seria ingênuo pensar que noções como centro e periferia tenham perdido a sua operacionalidade. No mundo das artes, a flexibilização das fronteiras e a expansão dos seus limites não eliminaram uma organização extremamente hierárquica, especialmente no que diz respeito ao mercado.


A entidade mítica designada como “mercado internacional da arte contemporânea” está longe de ser internacional no sentido próprio da palavra; é, na verdade, monopólio de um clube seleto de agentes que se encontram em áreas centrais do ponto de vista político, econômico e cultural. Tanto os artistas quanto os colecionadores e galeristas que pertencem a este circuito -onde os lances mínimos ultrapassam US$ 100 mil- encontram-se no eixo Europa-Estados Unidos10. Nesse contexto, artistas de países periféricos, como o Brasil, são assimilados na medida em que contribuem a uma revitalização controlada. Evita-se, assim, o esgotamento da oferta, sem, contudo, alterar a distribuição dos melhores lugares. As exceções existem e servem para confirmar a regra.


2) O Brasil estaria conquistando um lugar de destaque na arena internacional ?

O processo de globalização está alterando o mapa das artes e isso significa uma diversificação das representações nacionais e não uma especial concessão ao Brasil. Aliás, a grande maioria dos agentes internacionais que conhece e trabalha com a produção brasileira afirma que “o Brasil não é mais o lugar mais “quente”, como já foi um dia11”. Hoje a atenção volta-se para outros continentes, em especial a Ásia. Destaque para a China, que é, de longe, o país que tem despertado o maior interesse no circuito da arte contemporânea internacional12. Isso aponta para uma forte discrepância entre afirmações por parte dos agentes brasileiros e a opinião de galeristas e críticos no circuito europeu e americano.

Em relação ao circuito institucional -exposições temporárias organizadas pelos mais diversos museus e centros culturais no mundo todo-, o Brasil tem obtido espaço significativo, embora isso possa ser dito também sobre muitos outros países periféricos, não sendo uma exclusividade brasileira.

No entanto a arte brasileira é praticamente invisível no mercado. Há uma média de 20 artistas brasileiros representados em galerias européias e americanas (se considerarmos galerias consolidadas, comerciais, com mais de cinco anos de atuação, boa localização etc.) e muitos são representados, mas não vendem13; um número ainda menor freqüenta os leilões, nos quais 70% das obras vendidas ficam dentro da média ou abaixo dos preços de avaliação (dados coletados a partir de 1999). A arte brasileira não se destaca em nenhum dos diversos indicadores internacionais existentes (Artprice, Kunst Compass, Top 200)14. Poucos artistas aparecem vez ou outra nas revistas especializadas e raríssimos são os artistas que fazem objeto de publicações.

Isso está muito, muito longe de fazer jus à vitalidade da produção brasileira, considerado o circuito nacional.

3) As fronteiras nacionais estariam desaparecendo?

Outro erro recorrente é imaginar que critérios como nacionalidade e local de residência tenham perdido a validade na classificação dos valores artísticos. Cabe lembrar que é difícil escapar -mesmo em tempos de globalização- de determinantes geopolíticas e mesmo de um certo nacionalismo. Aliás, o nacionalismo é, até hoje, um fator importante para se compreender o funcionamento (e o sucesso) do sistema das artes em países que se destacam na cena internacional, como Inglaterra e Estados Unidos.

Os grandes colecionadores britânicos, públicos e privados, preferem o que se tem designado como “artistas britânicos contemporâneos”. Coleções como a da empresa Saatchi & Saatchi têm tido um papel importante na divulgação e na conseqüente valorização econômica desses artistas.

Um relatório da Sotheby’s de 2000 indica que os colecionadores americanos compram, antes de tudo, arte americana. Como são grandes consumidores, acabam comprando também arte de outras regiões. Ao contrário do que se diz normalmente, há também políticas públicas de incentivo à produção nacional (e ao uso da cultura como arma diplomática). Isso não vem de hoje. O expressionismo abstrato não seria o que é hoje na história da arte se não fosse a política cultural do governo americano e o engajamento nacionalista de críticos como Clement Greenberg.


A afinidade cultural também determina a preferência de colecionadores por artistas de um lugar ou de outro. Denis Gardarin, da galeria Brent Sikkema, que representa Vik Muniz em Nova York, comentou que os clientes americanos se interessam especialmente pelas obras que fazem referência ao seu sistema de valores. “O trabalho de Vik sobre personalidades brasileiras não teria uma entrada fácil aqui” (entrevista realizada em agosto de 2002).

Ainda hoje, quem mais compra arte brasileira é brasileiro, quem mais compra arte mexicana é mexicano, quem mais compra arte americana é americano e assim por diante.


Parece lógico, mas isso é freqüentemente negado por quem aspira entrar no circuito da arte contemporânea “internacional”15. No Brasil, muitos agentes recusam firmemente qualquer referência à “arte brasileira” ou mesmo à “arte do Brasil”. Quanto aos artistas, alguns tendem a negar toda e qualquer referência à nacionalidade, vista como obstáculo à internacionalização, outros abrem mão da superutilização de elementos identitários, tangenciando por vezes a caricatura ou o exotismo. Essas duas estratégias, simplificadas aqui, podem ser utilizadas em graus diversos e por vezes pelo mesmo artista, dependendo do contexto.

Para finalizar analisarei os resultados do leilão de arte latino-americana realizado pela Christie’s no mês de junho de 2004, em Paris. Esse exemplo recente serve para ilustrar algumas das idéias que desenvolvi ao longo do texto, cujo objetivo é provocar o debate e não propor respostas definitivas sobre o espinhoso tema do mercado das artes.

Há mais de 20 anos, Sotheby’s e Christie’s realizam, duas vezes ao ano em Nova York, leilões especializados de arte latino-americana. Quem já freqüentou estes leilões sabe que uma parte importante dos clientes viajam da América Latina a Nova York para a ocasião. Outros tantos são latino-americanos residentes nos Estados Unidos e colecionadores americanos interessados na América Latina. Uma parcela menor é representada por europeus e asiáticos, que, há algum tempo, resolveram investir num filão que ainda tem muita margem para valorização.

Se tradicionalmente os leilões de arte latino-americana se realizam em Nova York, qual seria então o interesse de se realizar uma venda em Paris?

Ana Sokoloff, diretora do Departamento de arte latino-americanda da Christie’s explicou que a decisão de realizar um leilão em Paris se deveu à vontade de familiarizar o público europeu com a arte latino-americana, facilitar as relações com os poucos colecionadores existentes e conquistar novos clientes16.

Um outro agente da casa de leilões declarou em off que a verdadeira razão da realização do leilão em Paris foi um calendário sobrecarregado na sede nova-iorquina (onde se realizam as vendas mais importantes): “Uma vez que nos leilões de arte latino-americana os clientes mais importantes são latino-americanos que viajam especialmente para a ocasião, o local da sua realização não tem assim tanta importância”.

Embora o leilão da Christie’s tenha apresentado, como de praxe, importantes obras modernistas (apresentadas de forma a enfatizar os laços com o modernismo europeu17), a representação brasileira mais significativa era contemporânea. Ao todo 12 artistas e 17 obras, de um total de 100 artistas latino-americanos: Cícero Dias, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Valeska Soares, Sérgio Camargo, Jac Leirner, Mira Schendel, Vik Muniz, Miguel Rio Branco, Rosângela Rennó, Edgar de Souza e Ernesto Neto.

Somente um artista brasileiro -Miguel Rio Branco- foi adquirido por um colecionador europeu, todos os demais compradores eram brasileiros. Segundo a Christie´s, Beatriz Milhazes também havia despertado interesse de compradores europeus, mas sua obra foi retirada do leilão depois do catálogo ser impresso. Jean Boghici abocanhou boa parte das obras (Cicero Dias, Flavio de Carvalho, Mira Schendel, Di Cavalcanti).

Esses resultados indicam de forma clara que o “mercado internacional” não é uno, mas segmentado e que os colecionares não são “internacionais”, pelo contrário, estão sujeitos ao contexto local/regional.

O preço alcançado pelas 17 obras leiloadas não permite uma avaliação otimista do mercado para os artistas brasileiros: seis obras foram vendidas acima do preço de avaliação, sete ficaram abaixo e as demais ficaram na média. Essa variação se repete em muitos outros leilões que já tive a oportunidade de acompanhar. Isso faz dos leilões uma boa oportunidade de investimento. Os marchands compram obras abaixo do valor de mercado para depois revender com uma boa margem de lucro. Uma ocasião, uma semana após os leilões da Christie’s, encontrei, numa galeria em Nova York, a mesma obra de Mira Schendel leiloada em Paris por um preço três vezes maior. Vi isso acontecer muitas outras vezes. Certamente o mesmo pode valer para obras revendidas no Brasil.

Para a Christie’s, os resultados de Paris, de forma geral, foram positivos, mas é pouco provável que a empresa mantenha um calendário europeu18.

Ainda que se considerem os leilões um mundo à parte e pouco representativo do funcionamento do mercado de arte -que é muito mais difuso e dinâmico nas galerias e feiras-, eles oferecem algumas vantagens para nossa análise: os preços são divulgados à luz do dia, os lances podem ser acompanhados ao vivo, os resultados públicos e, com sorte, os compradores identificados. Segundo estimativas, os leilões representariam menos de 10% dos negócios realizados. Mas, se não se pode dizer que os resultados dos leilões se reproduzem da mesma forma nas feiras e galerias, tampouco se pode imaginar que eles são diametralmente opostos.

Com esse exemplo não quero dizer que os agentes do mundo das artes no Brasil devam abandonar toda e qualquer estratégia de inserção no mercado internacional. Mas penso que é necessário um pouco mais de cautela nas apostas.

Existem circuitos alternativos, fatias de mercado que não movimentam somas extraordinárias, mas que possuem uma grande vitalidade e que são uma opção muito mais factível para artistas e galeristas brasileiros. Mais interessante talvez fosse considerar as oportunidades oferecidas por esses circuitos, pelos mercados reais (locais, nacionais, regionais) que possuem um potencial extremamente favorável para a arte brasileira. Os galeristas brasileiros que têm participado da nova Miami Basel destacam os colecionadores latino-americanos como os melhores compradores19.


Por fim, dever-se-ia considerar a criação de um banco de dados sobre a arte brasileira contemporânea, que disponibilize informações não só sobre a cotação dos artistas no mercado, mas também sobre a participação em exposições, referências em publicações e na mídia, entrada em coleções públicas e privadas no Brasil e no exterior. Tal projeto poderia ser o ponto de partida para a construção de uma história internacional da arte brasileira20, ferramenta importante para a consolidação do sistema das artes no Brasil e para o reconhecimento, sem concessões, da sua produção no âmbito internacional.



Ana Letícia Fialho

É critica independente, pesquisadora especialista em inserção da arte brasileira e latino-americana nos circuitos internacionais, doutoranda na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris (Bolsa Capes).




1 - Para citar apenas alguns exemplos: o livro “Arte internacional brasileira”, de Tadeu Chiarelli (Lemos Editorial, São Paulo, 1999); os artigos “Passaporte visado” e “As rotas da arte contemporânea” (Revista “Bravo”, edição de setembro de 1999); “Obra de Ernesto Neto faz passeio pelo mundo” (“Jornal da Tarde”, SP, 16/01/2000); “Brasileiros no exterior” (“Folha de S. Paulo”, 10/02/1999).



2 - “A inserção da arte brasileira nos circuitos internacionais” é o título provisório de minha tese de doutoramento, desenvolvida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre 2000 e 2004, com defesa prevista para o primeiro semestre de 2005.



3 - O mercado internacional exerce especial fascinação e acaba por influenciar, de forma excessiva, os setores produtivos de países menos desenvolvidos, como o Brasil, que sofrem de uma vulnerabilidade econômica e cultural (tendência ao mimetismo). Por analogia, penso aqui na produção de grãos, que embora longe de esgotar as potencialidades do mercado interno, tem adotado o modelo do agronegócio, voltado à exportação.


4 - Faço uma análise mais detalhada da questão no artigo “Les expositions internationales d’art brésilien: discours, enjeux, pratiques”, apresentado no Primeiro Encontro de Cultura no Brasil, Embaixada do Brasil na França, fevereiro de 2004.

5 - Jacques Leenhardt considera a globalização um processo que constrói e desconstrói as relações culturais no mundo. É também um imaginário que se constrói pelo discurso, um processo no qual a obra e o artista se posicionam. Fazer parte da globalização é também construir um sistema imaginário, revisar os quadros, os enunciados da história da arte (seu lugar e sua legitimidade). Essas questões foram debatidas no seminário Mondialisation des Arts, em Paris, no qual apresentamos conjuntamente “L’art brésilien dans la mondialisation”, em fevereiro de 2004.


6 - Sobre a questão, ver o excelente artigo de Annie Verger « Le champ des avant-gardes », «Actes de la Recherche en sciences sociales », nº 98, p. 105-120.

7 - Sobre a recepção da arte brasileira pela crítica internacional, ver Ana Letícia Fialho, “Artistes brésiliens dans les hauts lieux de l'art contemporain: la preuve de la globalisation ou fait d'exception confirmant l'exclusion ?”, paper apresentado no seminário internacional New Trends in the Sociology of the Arts, Paris, abril de 2004.

8 - Sobre a noção de capital cultural ver Pierre Bourdieu, “A economia das trocas simbólicas” (Editora Perspectiva, 1974).

9 - Bourdieu, Pierre. « La distinction : Critique social du jugement » ( Minuit, 1979).

10 - Sobre a hierarquia que organiza este mercado, ver os trabalhos de Alain Quemin, especialmente « Le rôle des pays prescripteurs et le marché de l’art contemporain » (Editions Jacqueline Chambon/Artprice, Nîmes, 2001). Segundo ele, o mercado internacional é liderado pelos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Suíça, França e Itália. Os americanos têm 34,2% do total do mercado, a Alemanha 29,9%, a Grã-Bretanha 7,5%, a França 4,3% a Itália 3,6%. Em 2000, os dez primeiros colocados em notariedadade, segundo o indicador da revista francesa “Capital” eram os artistas Sigmar Polke (Alemanha), Gerhard Richter (Alemanha), Bruce Nauman (Estados Unidos), Rosemarie Trockel (Alemanha), Pipilotti Rist (Suíça), Cindy Sherman (Estados Unidos), Georg Baselitz (Alemanha), Louise Bourgeois (Estados Unidos), Günther Förg (Alemanha) e Christian Boltanski (França).


11 - Entrevista com Mary Sabatino, em agosto de 2002, diretora da Lelong Galery, em Nova York, que representa Cildo Meireles e Waltércio Caldas. Mary Sabatino foi uma das responsáveis pelo evento Brazil in New York, realizado em diversas galerias, no verão de 1995, e que teve, por conseqüência, a integração de um bom time de artistas brasileiras no mercado americano.


12 - Em uma entrevista realizada em julho de 2002, Richard Vine, editor da revista “Art in America”, apontou a China como o país do momento em termos de arte contemporânea. Disse ainda que os Estados Unidos estavam, surpreendentemente, atrasados em relação à França no que diz respeito ao reconhecimento do interesse da produção chinesa, tendência que ele se mostrou empenhado em reverter. De fato, uma análise das compras efetuadas pelo Museu Nacional da Arte Moderna Georges Pompidou indica um crescimento nas aquisições de obras de artistas chineses a partir do início dos anos 90 (Fonte : Videomuseum, banco de dados sobre as coleções dos museus franceses, 2004). Já “Art in America” tem publicado regularmente grandes matérias a respeito não só da produção mas da cena artística chinesa. Ver, em especial, a edição de “Art in America” de julho/agosto 2004. Conseqüentemente, mais e mais artistas têm sido integrados nos circuitos de exposição e galerias em Nova York. O tema vale um artigo.

13 - Resultado de 18 entrevistas realizadas em Paris, Londres e Nova York, com galeristas que trabalham com artistas brasileiros apontados como internacionais por agentes culturais no Brasil .

14 - Esses aspectos da inserção da arte brasileira são analisados, em detalhe, na minha tese de doutorado, conforme já referido, não havendo espaço neste artigo para desenvolvê-los.


15 - Sobre os requisitos fundamentais da arte contemporânea, entre eles o seu caráter intrinsicamente internacional (em oposição ao nacional), ver o livro de Anne Coquelin, “L’art contemporain” ( PUF, Paris, 1996).


16 - Entrevista na Christie’s, Paris, dia 3 de junho de 2004.


17 - Sobre a assimilação da arte brasielira à produção americana e européia, ver Ana Letícia Fialho, “Identity and territorial representation in contemporary art institutions: the gap between discourse and practices”, apresentado na New York University, em abril de 2004, e publicado no “Research abstracts 2004”, Centre for Brazilian Studies, Universidade de Oxford.



18 - Entrevista com Alfredo Molina, Christie’s, julho de 2004.

19 - Ver entrevista com galeristas divulgada no site Mapa das Artes, (www.mapadasartes.com.br).

20 - Uma estratégia visando o reconhecimento internacional da arte latino-americana tem sido desenvolvida por Patricia Cisneros, com auxílio de curadores como Paulo Herkenhoff e Luiz Perez-Oramas. Cisneros tem financiado, entre muitos projetos dedicados à valorização da arte latino-americana, uma série de publicações pela editora do MoMA.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Política de Museus no Brasil

Trópico na Pinacoteca 3: Museus


Por Ana Paula Cohen



Saiba como foi o debate de Sonia Salzstein, Roberto Teixeira da Costa e Marcelo Araújo. Após quase duas décadas de prática das leis de incentivo fiscal e do gradativo abandono da esfera cultural por parte do Estado, as instituições culturais no Brasil apresentam uma urgente necessidade de reestruturação. Nesse sentido, discussões como a realizada na Pinacoteca do Estado (São Paulo), no último dia 31 de agosto, mostram-se como uma primeira mobilização para gerar mudanças efetivas.

A terceira edição da série de encontros "Trópico na Pinacoteca" enfocou os problemas relativos às "Políticas de museus". Foram convidados o economista Roberto Teixeira da Costa, conselheiro de diversas empresas, presidente do conselho deliberativo do Museu de Arte Moderna de São Paulo e vice-presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca Brasileira, e a crítica de arte e professora da Escola de Comunicações e Artes da USP, Sonia Salzstein. A mediação coube ao museólogo Marcelo Araújo, atual diretor da Pinacoteca.

Limites entre o público e o privado

Marcelo Araújo introduziu as palestras enfatizando a necessidade de reelaborar "estratégias possíveis para os museus", no atual contexto brasileiro "em que a afirmação do modelo neoliberal e a consequente refração do papel do Estado tem tornado absolutamente fluidos os limites entre o público e o privado".

Entre as questões colocadas por Araújo, uma delas seria pensar o que torna, hoje em dia, uma instituição pública. Citou o conselho internacional de museus (Icom), para o qual é necessário que o museu seja "voltado para o interesse da população". O simples estatuto jurídico dessa instituição, ou o fato dela manter as portas abertas ao público, são, portanto, insuficientes.

O museólogo considerou a Lei Rouanet responsável pela "verdadeira tragédia" em que se encontram a maioria dos museus no país. "A preponderância da lei Rouanet na estruturação das atividades culturais resultou na concentração de empreendimentos desenvolvidos pelas próprias empresas patrocinadoras". Tal situação "acabou ditando uma subordinação das instituições museológicas aos interesses do mercado".

Marcelo Araújo citou uma advertência feita há alguns anos por Maurício Segall (diretor do museu Lasar Segall por 30 anos): "A grande ameaça não é a existência das estratégias de marketing, mas a maneira como a médio e longo prazo essa prevalência acabará por determinar o próprio pensamento curatorial, em função desses interesses de marketing". Tal afirmação se confirmou nas falas, embora antagônicas, de Roberto Teixeira da Costa e de Sonia Salzstein, marcando um dos raros pontos de concordância entre os debatedores.

O curador Ivo Mesquita, demitido em junho último da direção do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, estava na platéia, bem como outras pessoas que pensam ou exercem cargos em instituições de natureza museológica, como Cristina Bruno, Denise Grinspum e Stella Teixeira de Barros. As razões dessa demissão motivaram a Pinacoteca do Estado e Trópico a organizar o encontro.

Como parte da introdução, Araújo leu trecho de um artigo do crítico e curador Paulo Sérgio Duarte (também presente no auditório): "uma leitura crítica do museu deveria ser uma rotina realizada por seminários transdisciplinares, onde críticos, historiadores, cientistas sociais, curadores, designers, arquitetos e museólogos colaborassem com subsídios para traçar a estratégia da instituição. Os seminários quadrienais deveriam se tornar uma exigência dos museus de arte no Brasil, que muitas vezes estão mais interessados em macaquear as bem sucedidas operações dos homens de marketing do que pensar sobre si mesmo e seus destinos".

Popularização dos museus

Roberto Teixeira da Costa apoiou-se nas afirmações de Thomas Krens, diretor do Museu Guggenheim, para quem "um museu sintonizado com os novos tempos precisa atrair o público com cinco divertimentos: grandes coleções permanentes, grandes exposições especiais, grande arquitetura, espaço para alimentação e oportunidades para fazer compras". Essas plataformas de atuação demonstram uma total subordinação da reflexão curatorial à lógica do mercado e do lazer. Segundo Teixeira da Costa, tal modelo, "em maior ou em menor escala, está sendo seguido no Brasil".

Teixeira da Costa ressaltou a popularização dos museus, ao tratar a instituição como lugar que "deixou de ser um espaço dedicado às elites e tem um objetivo na sociedade muito mais amplo do que ser um espaço refinado, onde as elites se encontram para questionar obras de arte". Na sua visão, os museus são um elemento de aproximação de segmentos menos favorecidos da sociedade, na qual a arte pode exercer um mecanismo de diminuição dos problemas sociais. Nesse sentido, chamou a atenção para a importância do "museu como centro de educação".

Desenvolvendo um dos princípios de Thomas Krens, de que "a função do museu é criar uma situação tal em que o público não se sinta tiranizado", Teixeira da Costa observou que "o museu deve ser um ambiente em que as pessoas fiquem completamente à vontade", "em que elas vão para relaxar, para absorver idéias, conceitos e não se sintam tensas ou obrigadas a um ambiente na qual não estão acostumadas".

As três principais questões colocadas pelo economista foram extraídas de artigos publicados sobre o tema dos museus hoje. A mobilização de recursos foi um assunto tratado exaustivamente ao longo de sua apresentação. Em seguida, indagou como seria a sobrevivência dos museus no século 21: "Será que seu papel está reservado a fazer parte da indústria do entretenimento? Será que o museu do futuro passa a ser exclusivamente uma disneylândia cultural?" Por fim, questionou se a arquitetura dos museus não estaria ganhando mais importância do que o objetivo propriamente dito do museu.

Norte-americanizados

Segundo Teixeira da Costa, "a experiência brasileira é muito mais inspirada -como quase tudo que nós fazemos aqui- no modelo americano do que no europeu". Comparou diversos exemplos de museus nos Estados Unidos e na Europa para avaliar a situação brasileira. "Uma coisa que difere muito do sistema americano para nosso sistema é a questão do endowment".

O endowment é uma receita -gerada a partir de um volume de recursos, aplicado a taxas de mercado a riscos relativamente baixos- que ajuda a custear as atividades da instituição. "Nos Estados Unidos, por exemplo, o Metropolitan tem um endowment que cobre onze anos de atividades do museu, a parte que o Guggenheim tem um endowment muito baixo, o que, de uma certa maneira, explica a agressividade comercial, o marketing violento do Guggenheim se comparado ao do Metropolitan. Ou seja, na medida em que você não tem recursos que garantam manter uma personalidade do museu, você parte para experiências um pouco mais agressivas, mais pirotécnicas, que talvez se distanciem do objetivo ideal do museu".

Nessa etapa da palestra, levantou diferentes problemas relacionados à arrecadação de fundos em museus. Por exemplo: "quais são os artigos compatíveis para serem vendidos em uma loja de museu? Seriam coisas ligadas àquela exposição, à atividade artística, cultural, ou simplesmente trata-se de transformar a loja num shopping center?" Tratou também do tema da filantropia: "4/5 dos recursos de filantropia nos Estados Unidos são de pessoas físicas. Então, há um conceito de filantropia que o brasileiro ainda não tem, até pelo seu nível de renda, ou porque aqueles que têm renda talvez não tenham essa motivação".

Finalmente, levantou a questão sobre a coerência de criar um setor de arrecadação de fundos nas instituições brasileiras, seguindo o modelo do British Museum. Teixeira da Costa assinalou que "a fortuna mudou, de tal maneira, de mãos em São Paulo, que é preciso descobrir quem são estes novos entrantes que estão aí com o dinheiro, e que talvez queiram ter uma participação maior na arte e na cultura".

O economista indicou, ao longo de sua exposição, algumas taxas de visitação, dando exemplos nacionais: a mostra do Monet no Museu Nacional de Belas Artes atraiu 432 mil pessoas, durante dois meses, em 1997; a de Dali, 245 mil; a de Rodin, 226 mil; Picasso, no MAM do Rio de Janeiro, 136 mil; Camille Claudel, 120 mil. O MAM do Rio de Janeiro, em 2001, teve 177 mil visitantes, já o MAM de São Paulo, 280 mil visitantes.

Os dois últimos temas abordados por Teixeira da Costa foram: a "cultura como mecanismo de aproximação" e a" falta de planejamento sobre cultura na pauta dos candidatos à presidência do país e ao governo do Estado de São Paulo". Lamentou a falta de uso da arte e da cultura como mecanismo para conhecerem melhor o Brasil. Segundo ele, "temos a pretensão de saber o que são os Estados Unidos, mas não sabemos. E os Estados Unidos evidentemente não sabem o que é o Brasil". "É preciso que o Brasil faça um esforço também de se apresentar melhor e de vender melhor sua arte e cultura, porque o que nós temos para oferecer é de grande relevância".

Fisionomia popular e de elite

Sonia Salzstein não quis apresentar sua comunicação sem antes fazer as ressalvas que anotou em relação a palestra anterior. Adiantou que o horizonte de sua fala contemplaria a questão do "museu como lugar que tenha uma fisionomia mais popular do que uma fisionomia de elite", mas ponderou que caberia "problematizar o que entendemos por abrir o acesso e dar esse caráter popular à fisionomia do museu".

Salzstein criticou um certo hábito, criado nos anos 90, de confundir "grandes cifras de público" com "um museu que se populariza". Assim sendo, "temos perdido de vista a questão da formação. Formação não só como o trabalho de cativar novos contingentes de público, de ter setores de monitoria bem montados, mas há um trabalho de formação em um museu que privilegia, num conjunto de ações hierarquizadas, um trabalho de pesquisa sobre o seu próprio acervo".

Salzstein considerou a posição de Teixeira da Costa "uma visão otimista do papel do marketing cultural". Disse acreditar nesse "extraordinário aporte de recursos, que começou a aparecer para a área de artes a partir dos anos 90", mas pontuou um problema maior: com isso, "abdicamos de quaisquer políticas públicas que fossem capazes de hierarquizar, de disciplinar, a distribuição desses recursos". "O fato de nós sabermos que o Estado já não parece capaz de financiar sozinho a vida desses museus, das instituições públicas, não implica que elas devam capitular totalmente perante as estratégias de marketing".

O exercício da crítica

A discussão da esfera institucional foi feita a partir de um exame simultâneo da situação da crítica nos anos 90. Partiu da constatação de que "a própria compreensão da disciplina da crítica está em crise", referindo-se ao gênero consolidado desde a modernidade do século 19 com o poeta francês Charles Baudelaire. Salzstein levantou a premissa de que os problemas da esfera institucional provém justamente do "esvaecimento do gênero da crítica".

Na "crítica moderna", segundo Salzstein, "havia um ecletismo de origem que a tornava um exercício do risco", que a permitia "escapar ao enrijecimento num gênero estável e aos interesses do mundo da cultura". Nesse sentido, a dimensão pública não se subordinava às suas "prescrições" ou "imperativos".

Salzstein esclarece que, ao contrário do que possa parecer, sua intenção não é fazer um "discurso niilista, desqualificando o presente", mas pensar "alternativas a esse lugar", que vê "comprometido para o exercício da crítica".

A primeira constatação baseou-se na percepção de uma "dissociação entre a atividade da crítica e a da curadoria, ao longo da década de 90". Justificou: "as curadorias, introduzindo-se no cenário contemporâneo como uma nova forma de intervenção crítica, vieram, progressivamente, privilegiando, ao invés de um objeto de arte, abordado em sua singularidade, conjuntos permutáveis de objetos, que fossem capazes de representar este ou aquele enunciado tomado pela curadoria como uma motivação".

Essa nova atitude, segundo Salzstein, "produziu consequências importantes no campo da crítica. Em primeiro lugar, a mudança de natureza do interesse da crítica, que migra da obra para certas categorias conceituais que podem referir-se a conjuntos heterogêneos de objetos". Essa migração "implica também a liquidação da noção secular da crítica (...), espécie de dilatação reflexiva do trabalho de arte, que ao mesmo tempo em que o projetava para o universo da cultura, reconhecia-lhe uma reserva de hermetismo, de intangibilidade".

O que Salzstein ressalta é o "arrombamento da disciplina" que teria se tornado uma "prática discursiva camaleônica". Nessa perspectiva, lamenta que o ecletismo de origem tenha resultado na "renúncia por um domínio especializado". "O desmanche em curso, em vez de ter o efeito de criticar a crítica como gênero, tal como firmada na tradição moderna, acaba por desautorizar o próprio exercício da crítica".

A segunda constatação é a de que, no fim dos anos 90, a arte despediu-se dos derradeiros vínculos com a noção de lugar. Em outras palavras, Salzstein constata uma "dinâmica de funcionamento a base de eventos, sem paternidade institucional muito definida, de sorte que o lugar onde esses eventos acontecem é absolutamente indiferente". Isso se dá na medida em que "a experiência do contato com a arte vai se reduzindo à unilateralidade de um ato de consumo que pode ocorrer em qualquer lugar". A questão é que o "espaço do consumo é um espaço de atos eminentemente privados, confinados a seu próprio narcisismo, embora nas aparências tudo se dê como se tratasse de um fenômeno coletivo".

Cultura de eventos

Salzstein prosseguiu seu raciocínio afirmando que, no Brasil, ao longo da última década, a "maior parte dos recursos privados canalizados para a área de arte incidiu em eventos" de modo que teriam ficado de lado "projetos de longo prazo, que exigem injeção permanente de recursos e que não dão frutos imediatos".

Na sua opinião, retomando a perda de "autonomia da prática da crítica" apresentada anteriormente, "a consistência de uma crítica de arte na situação brasileira só pode adquirir um sentido mais pleno se ela estiver conectada ao horizonte de uma história da arte brasileira. E uma crítica pensada nesses termos requer investimentos em projetos de longo prazo, que, por sua vez, requerem a estabilidade e a constância de um espaço institucional".

O problema é que se criou uma situação em que há uma "disparidade muito grande entre os interesses da produção artística e cultural e os interesses dos gerenciadores desses recursos". Não havendo mais, no Brasil, "esse projeto de um espaço público, não há como fazer com que esses recursos sejam manejados segundo critérios que sejam tornados públicos".

Neo-populismo globalizado

Nesse contexto pautado por grandes eventos, Salzstein denunciou o surgimento de um "neo-populismo globalizado", um fenômeno não só brasileiro mas que, "evidentemente, encontrou aqui terreno fértil". Corresponde, na sua opinião, à "promissora premissa de uma escala popular", aclamada na fala de Teixeira da Costa. Salzstein ressaltou que a "escala social jamais pode abrir mão da dimensão da formação, de um apreço de um investimento na dimensão experimental da produção".

Segundo ela, se houver uma "política escalonada e hierarquizada" é possível conseguir uma "estratégia de transmissão, sem descuidar dessa região que é tão desinteressante para o mercado como é a área de pesquisa, de experimentação, da formação, que não trazem cifras de público, e, portanto, a princípio, não atrai grandes patrocínios".

Salzstein abordou a questão de inserção da arte contemporânea brasileira no mercado internacional, afirmando que as "gerações mais recentes teriam um embate mais produtivo com o meio internacional se estivessem munidas de uma percepção mais clara da própria história da arte brasileira". Para ela, a "integração da arte brasileira ao circuito internacional só poderá se demonstrar como um verdadeiro salto desprovincianizador -usando um termo emprestado de Roberto Schwartz-, como algo mais do que uma reação sistêmica ao fenômeno da mundialização dos mercados, se puder favorecer o adensamento cultural interno da arte brasileira". E, completando, "se puder favorecer uma relação mais paritária da arte brasileira com o meio internacional".


Em sua conclusão, Salzstein aludiu ao problema da influência de interesses alheios à esfera da cultura, ao reconhecer que o curador é uma "peça que se engrena e que sofre a pressão dessa estrutura de marketing exercida externamente à profissão cultural".

Em resposta a uma pergunta de Marcelo Araujo, sobre "políticas capazes de hierarquizar a relação das instituições culturais com a iniciativa privada", Salzstein referiu-se ao Ministério da Cultura do governo Fernando Henrique Cardoso como "acéfalo". Infelizmente, eles se mostraram "sofisticados e cosmopolitas apenas na política econômica" e absolutamente populistas na área cultural. Como exemplo, Salzstein mencionou o fato "indesculpável" de FHC ter levado uma imagem sacra setecentista, patrimônio nacional, de presente ao Papa, em encontro oficial do Itamarati, fato tão pouco divulgado pela imprensa.

Para concluir sua resposta, enfatizou a urgência de se criar, em nível federal, um "colegiado" capaz de avaliar "a ação das instituições que se beneficiam de renúncia fiscal". Esse colegiado deveria determinar os critérios de distribuição dos benefícios e verificar, de tempos em tempos, o que foi cumprido pelas instituições.


Leia a seguir trechos do debate com a platéia

Rafael Raddi: (do Instituto Museológico de Berlim e do McLuhan Institute em Maastricht, na Holanda) Roberto Teixeira começou a explanação dele dizendo que os museus brasileiros baseiam-se no modelo americano e no europeu. Setenta e oito por cento dos museus europeus são estatais porque a lei fiscal e a constituição européia dizem que cultura é prioridade do Estado. Aqui nós temos uma miscigenação, ou seja, o sistema capitalista faz com que as leis sejam européias, mas, na prática, são americanas. Então há um choque de praticidade na realização de projetos.


Por exemplo, na América do Norte, o sistema fiscal é filantrópico. Por quê? Porque toda pessoa física detentora de uma grande coleção tem de pagar mais de cem por cento sobre o valor das obras que deixar ao falecer. Então a familia doa para o museu justamente para "burlar" o fisco e não pagar a taxação.


Um outro fator é a formação de profissionais para a captação de recursos. Por exemplo, no Guggenheim, há 17 pessoas trabalhando somente nesse setor. O museu Metropolitan, de Nova York, tem 38 pessoas na comissão de captação. No Brasil, há uma falta de conscientização devido à falta de formação de pessoal.


Na comunidade européia há um programa de conexão entre todos os museus nacionais, desde o Louvre, com o de Berlim, com o Prado, e foi aberto, há duas semanas, a home page www.euromuse.net, ou seja, todos os museus estão agora conectados e buscando a identidade cultural européia através da formação educacional. E estão pensando inclusive em fazer uma fundação para coletar dinheiro. Os museus que têm um grande lucro devem passar o lucro para pequenos museus.

Voltando à estrutura de política museal do Brasil, proponho a criação de três instituições. Um instituto de pesquisas museológicas, no qual os museus daqui formam uma equipe, para fazer, por exemplo, um levantamento: "quais são as pessoas que vão visitar museus? Do que necessitam?" etc. Proponho a criação de um instituto de pesquisas museológicas e também uma sociedade de política cultural. E um terceiro seria fazer um conselho paulista de política cultural. Para exigir desses políticos e para falar: a classe administradora cultural necessita disso, disso e disso. Para pleitear junto ao governo.

Roberto Teixeira da Costa: Rafael, muito boas essas sugestões. Eu faria dois reparos. Primeiro, você usou a palavra "burla" no contexto norte-americano. Uma vez, eu estava ouvindo uma palestra do Santiago Dantas e ele disse que existe uma diferença entre to evade e to avoid. To evade é burla, to avoid não. Quer dizer, quando você fala burla, não existe burla, existe sim uma estrutura fiscal que estimula a doação. Segundo, o que existe, na minha percepção, é um baixo nível de cooperação, de diálogo entre as instituições culturais no Brasil. Sua sugestão de criar um tipo de pesquisa que seria dividida entre os museus, e uma espécie de política cultural de São Paulo, me parece muito interessante.

Paulo Sergio Duarte: (crítico e curador) O que eu acho importante é a reflexão periódica, para traçar estratégias para os museus de arte. Esse fórum, que poderia ser um seminário quadrienal de âmbito nacional, com convidados do exterior para que eventualmente possam trazer sua cooperação, acho suficiente, no momento atual, para estabelecer essas estratégias e, sobretudo, essa ação coordenada entre as diversas instituições.

Roberto Teixeira tem toda a razão quando diz que no Brasil as coisas são muito imediatistas, até por causa da cultura inflacionária. Mas nós vivemos também em instituições, as instituições de ensino, onde nós somos obrigados a pensar no mínimo nos períodos de formação dos nossos alunos. E como ninguém se forma em menos de quatro anos, nós estamos acostumados a planejar nossas vidas em quatro anos.

Então, quem vive no ambiente universitário, no ambiente educacional, está acostumado a ter a sua vida planejada segundo um calendário que é feito sim a médio e longo prazo, independente do mundo exterior estar sendo refeito trimestralmente, isso quando não era refeito no overnight, todo dia, não é?!

Então, acho que planejar quadrienalmente os museus é necessário e possível. No caso do Brasil, a fala da Sonia é muito importante, sobre o que ela chamou de "adensamento do lugar". Ou seja, qualquer pessoa que estudar um museu do ponto de vista da sua planta baixa, e visitar a Tate Modern, ou a Tate Gallery, ou visitar o MoMA, mas vivenciando internamente a instituição e trabalhando um pouco lá dentro, vai verificar que até as relações entre os espaços físicos dos museus no Brasil e dos museus no Exterior são muito diferentes.

Aquilo que nós visitamos, as salas de exposição de um museu no exterior, é a ponta do iceberg. Ali tem 30% do espaço físico. Setenta por cento está dedicado aos núcleos de pesquisa, às reservas técnicas, aos laboratórios de formação de restaurador, aos laboratórios de restauração.

Um museu de arte que se preze é necessariamente uma instituição de caráter universitário. É uma instituição que forma seus próprios quadros, um local de disseminação de formação profissional de nível muito elevado, e muito especializado, além de servir ao público com exemplos concretos, como esse tipo de proposta bem adequada à situação brasileira que fez a Sonia aqui, que seria dar uma formação para um público que não tivesse acesso a um curso caro, ou seja, transformar os museus de arte em escolas preparatórias de acesso às escolas de arte, ou às escolas de museologia.

Acho isso importante porque adquire o perfil da sociedade brasileira, e não tenta reproduzir os modelos de infra-estrutura e desenhos de um museu num país muito mais rico, que já cumpriu outras etapas. Mas existe um diferencial que é muito importante que a gente saiba, que foi uma coisa que foi sublinhada aqui, que me preocupa muito, é que hoje o produtor cultural dita o calendário das instituições, e mesmo das instituições públicas. Porque como houve um esvaziamento muito grande das instituições do ponto de vista interno de seus recursos, ela fica a mercê, para preencher seu papel de ofertar alguma coisa ao público, dessa demanda externa, e essas produções obedecem a um princípio que não é norteado pelo ritmo da pesquisa.

Ivo Mesquita sublinhou isso muito bem numa entrevista recente no “Jornal do Brasil”: o produtor cultural não tem o calendário subordinado às necessidades de uma pesquisa sobre um tema, mas sim a satisfazer o seu cliente, e seu cliente tem em geral uma agenda que é para prestar contas, por sua vez, para os seus fornecedores, para os seus outros clientes. Então, fica um calendário muito atrelado e subordinado ao mercado. Isso tem deformado muito, nos últimos anos, o calendário das nossas instituições.

É importante saber se houve esvaziamento de recursos públicos de dentro das instituições públicas, porque esses recursos que são alocados para esses eventos externos são absolutamente públicos. Eles são resultado de renúncia fiscal! É dinheiro que deixa de ir para o Tesouro Nacional para ser alocado em projetos privados, para a promoção de marcas comerciais! E com recursos públicos, porque são resultados de renúncia fiscal!

Então, essa legislação de renúncia fiscal e de incentivo à cultura que existe no Brasil, ela precisa ser profundamente revista, porque ela não transforma o empresário num patrocinador da cultura. Eu acho, portanto, que há muito o que fazer, há muito o que desenhar sobre esses projetos culturais, mas particularmente com relação aos museus eu acho que, desde já, é hora de nós convocarmos o seminário nacional quadrienal de museus de arte.

Cacilda Teixeira da Costa: (historiadora da arte) Quero falar de uma pesquisa sobre os livros patrocinados por empresas. Passei dois anos rastreando tudo que foi possível dessa produção editorial (pesquisa publicada pelo Instituto Itaú Cultural). E para a grande surpresa, desses livros -que, como o disse Paulo Sergio, não são patrocínios, é renúncia fiscal, é dinheiro público- eu não consegui dado nenhum no Ministério da Cultura! Portanto, eles liberam o selo da lei Rouanet para as empresas, mas não tomam o cuidado nem de saber que livro foi feito. Eles não têm no Ministério uma estante com os livros que foram patrocinados, para ver qual foi o resultado da renúncia fiscal, que foi liberada por eles!

Na verdade, o que eu senti, e que foi a maior surpresa ainda, é que havia maior nível de responsabilidade da parte dos patrocinadores, dos empresários, que lógico que uma grande porcentagem faz livros errados, repetidos, desnecessários, mas porque se orientaram mal, talvez, não por negligência. Enquanto no Ministério da Cultura há uma total negligência, eu chegava a irritar as pessoas quando pedia informações. Depois, eu publiquei um livro sobre essa pesquisa e nunca tive nenhum retorno do Ministério.

Fiz recomendações, como disse a Sonia, que houvesse um controle, que vissem o que vai ser patrocinado, que vissem que a bibliografia da história da arte no Brasil tem lacunas, tem períodos mal estudados. Mas o Ministério da Cultura nunca orientou ninguém a esse respeito.

Sonia Salzstein: A situação, especialmente em São Paulo, as instâncias técnicas dos museus estão totalmente desprestigiadas, têm muito pouca capacidade decisória. Isso é um problema que se impõe. Acho que o Paulo Sergio tem a sorte de trabalhar numa cidade que não se deixou avassalar por essas estratégias brutas e incultas de mercado, você tem uma outra experiência da cidade com as suas instituições públicas.

Lá tem um fenômeno maravilhoso: a despeito da penúria, você tem muito claramente posto o dado de que as instituições foram produtivas porque houve pessoas que emprestaram a sua libido. Então, está muito ligado a essa capacidade de ação de indivíduos. A situação em São Paulo tende a abafar essa eclosão das vontades individuais. A situação institucional aqui é muito mais autoritária.

Paulo Sergio Duarte: Em São Paulo existem duas instituições que têm muito bem desenhados os marcos de um museu de arte para prosperar e servir de exemplo para o país. No âmbito federal, o Museu Lasar Segall e, no âmbito estadual, a Pinacoteca do Estado. Eu não reconheço na situação atual do Rio de Janeiro (...) é porque você, Sonia, não tem visto nossas exposições "blockbuster". Em geral, começam lá. Depois vêm pra cá. Pode anotar que começam lá, sempre. É um desastre.



Ana Paula Cohen

É curadora independente e crítica de arte. Foi assistente da curadoria no Museu de Arte Moderna de São Paulo, durante a gestão do diretor Ivo Mesquita. Em 2003, trabalhará como curadora assistente no Kunstverein München, em Munique.


Link do texto na Revsita Trópico

quarta-feira, 23 de março de 2011

Texto: Inserções em Circuitos Ideológicos. Cildo Meireles

                                                                                                                                   
INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS (1970)*


Cildo Meireles

Eu me lembro que em 1968-69-70, porque se sabia que estávamos começando a tangenciar o que interessava, já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar com a idéia de público. Naquele período, jogava-se tudo no trabalho e este visava atingir um número grande e indefinido de pessoas: essa coisa chamada público. Hoje em dia, corre-se inclusive o risco de fazer um trabalho sabendo exata¬mente quem é que vai se interessar por ele. A noção de público, que é uma noção ampla e generosa, foi substituída (por deformação) pela noção de consumidor, que é aquela pequena fatia de público que teria o poder aquisitivo.

Na verdade, as "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram da necessidade de se criar um sistema de circulação, de troca de informações, que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado. Uma língua. Um sis¬tema que, na essência, se opusesse ao da imprensa, do rádio, da televisão, exemplos típicos de media que atingem de fato um público imenso, mas em cujo sistema de circulação está sempre presente um determinado controle e um determinado afunilamento da inserção. Quer dizer, neles a 'inserção' é exercida por uma elite que tem acesso aos níveis em que o sistema se desenvolve: sofisticação tecnológica envolvendo alta soma de dinheiro e/ou poder.

As "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram com dois projetos: o projeto "Coca-Cola" e o projeto "Cédula". O trabalho começou com um texto que fiz em abril de 1970 e parte exatamente disso: 1) existem na sociedade deter¬minados mecanismos de circulação (circuitos): 2) esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao mesmo tempo são passíveis de receber inserções na sua circulação: 3) e isso ocorre sempre que as pessoas as deflagrem.

As "Inserções em circuitos ideológicos" surgiram também da constatação de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas que você recebe, copia e envia para as pessoas) e as garrafas de náufragos jogadas ao mar. Essas práticas trazem implícita a noção do meio circulante, noção que se cristaliza mais nitidamente no caso do papel-moeda e, metaforicamente, nas embalagens de retorno (as garrafas de bebidas, por exemplo).

Do meu ponto de vista, o importante no projeto foi a introdução do conceito de 'circuito', isolando-o e fixando-o. E esse conceito que determina a carga dialética do trabalho, uma vez que parasita ria todo e qualquer esforço contido na essência mesma do processo (media). Quer dizer, a embalagem veicula sempre uma ideologia. Então, a idéia inicial era a constatação de 'circuito' (natural), que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na verdade, o caráter da 'inserção' nesse circuito seria sempre o de contra-informação.

Capitalizaria a sofisticação do meio em proveito de uma ampliação da igualdade de acesso à comunicação de massa, vale dizer, em proveito de uma neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função de arte e anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normal¬mente é amplo, mas é alienante (ado).

Por pressuposto, a arte teria uma função social e teria mais meios de ser densamente consciente. Maior densidade de consciência em relação à sociedade da qual emerge. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Tal qual existe hoje, a força da indústria se baseia no maior coeficiente possível de alienação. Então as anotações sobre o projeto "Inserções em circuitos ideológicos" opunham justamente a arte à indústria.

(...)

Porque tem uma transação em artes plásticas que se baseia ou na mística da obra em si (embalagem: tela, etc.) ou na mística do autor (Salvador Dali ou Andy Warhol, por oposição, são exemplos vivos e atuais): ou parte para a mística do mercado (o jogo da propriedade: valor de troca). A rigor, nenhum desses aspectos deveria ser prioritário. No momento em que há distinções nessa ou naquela direção, surge a distinção de quem pode fazer arte e quem não pode fazer. Tal como eu tinha pensado, as "Inserções" só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Quer dizer, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Uma outra coisa que se coloca, então, é a idéia da necessidade do anonimato. A questão do anonimato envolve por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual você não poderia ter nenhum tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras coisas: primeiro, atingiria mais gente, na medida em que você não precisaria ir até a informação, pois a informação iria até você; e, em decorrência, haveria condições de 'explodir' a noção de espaço sagrado.

(...)

Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação, tornam-se um triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer idéia que você colo¬car lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de arte. Mas com a platéia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova idéia uma nova linguagem para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora - trabalhar com a pólvora mesmo.

*Extraído do depoimento de CM registrado na pesquisa Ondas do corpo, de Antônio Manuel Copy-desk e montagem do texto: Eudoro Augusto Macieira. Publicado no Livro "Cildo Meireles" da FUNARTE. Rio de Janeiro, 1981.


                                                            

                                                                           


                  Projeto Coca-Cola( 1970)


Texto: Análise do Circuito

Publicado originalmente na Revista Malasartes, em 1975, Análise do Circuito de Ronaldo Brito marca o início do processo de politização do meio de arte brasileiro na década de 1970.

Análise do Circuito


BRITO, Ronaldo. Análise do Circuito. In FERREIRA, Glória(org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Funarte. 2006.