quinta-feira, 19 de maio de 2011

Texto: Uma dinâmica da arte brasileira, modernidade,instituições, instâncias públicas. Sônia Salzstein

RESUMO

O artigo discute a arte brasileira no processo de sua integração ao contexto artístico internacional, com as contradições de uma modernização periférica. Explora as conexões entre três questões que configuram a dinâmica do desenvolvimento dessa produção artística desde a renovação moderna dos anos 50 e que explicam algo dos desafios da internacionalização em curso: um renitente sentido do "moderno", que foi perdendo suas conotações utópicas e constituindo-se em problema nas reflexões sobre arte e cultura desde a década de 20; uma vida institucional marcada pela irrupção de ciclos de modernização mas que se demonstra incapaz de sedimentar um campo social da arte e as bases de um sistema cultural; a participação esquiva do legado da arte moderna brasileira no debate cultural, conseqüência de uma resistência no país à dimensão pública da arte, e ainda a noção de espaço público tal como foi tratada nas obras.
Palavras-chave: arte brasileira; instituições públicas; modernidade.

SUMMARY

This article discusses the process of integration of Brazilian art into the international context, with all the contradictions involved in modernization on the periphery. The author explores the connection between three issues that have been central to the dynamics of Brazilian artistic development since its modern renovation in the 1950s, and which explain some of the challenges posed by current internationalization: the stubbornly persistent use of the notion "modern", which began to lose its utopian connotations and to become a problematical issue in reflections upon art and culture since the 1920s; the institutional context, which is marked by successive surges of modernization Cycles but which has been incapable of establishing a social ground for art or a solid base for a cultural system; the elusive participation of modern Brazilian art in the wider cultural debate, which has to do with resistance towards the public dimension of art and with the notion of public space.

Keywords: Brazilian art; public institutions; modernity.



  Nunca, como nas duas últimas décadas, a produção artística brasileira recebeu tanta atenção do meio cultural ou alcançou tanta visibilidade pública. A repercussão parece ter aumentado especialmente a partir de meados dos anos 90, em face de um surpreendente interesse internacional pela arte brasileira. O fato é que toda essa recente projeção pública dá o que pensar, sobretudo quando sabemos que o setor sempre compareceu de maneira tímida ao debate das questões culturais no país, sendo mesmo pouco divulgado e apenas esporadicamente discutido para além de círculos especializados.
  Pelo menos desde os anos 50, entretanto — para não mencionar certos achados poéticos da Antropofagia, no contexto do movimento modernista de 22 —, ele tem estado no centro de uma história de renovação e de sentido experimental comparável à da arquitetura moderna ou do Cinema Novo. E desde já é preciso lembrar que, diferentemente desses dois célebres paradigmas da modernidade nacional, a arte moderna continua a desdobrar suas possibilidades no presente, reelaborando produtivamente todas as contradições que o sentido do moderno ainda pode implicar para a vida cultural no país. Todo o problema consiste, justamente, em que essa história até aqui não impregnou um campo social e uma dimensão pública.
   Antes de discutirmos a imagem nova que a arte veio constituindo a partir do princípio dos anos 80, conviria, então, recapitular algumas passagens cruciais de sua trajetória. Sabemos, por exemplo, que a obra dos anos 20 de Tarsila do Amaral (1886-1973) dispara um verdadeiro processo de autocompreensão da arte brasileira. Suas pinturas dos períodos "Paubrasil" (1924-25) e "antropofágico" (1928-29) pela primeira vez chamaram a atenção para o recalque da herança colonial e para o atávico sentimento brasileiro de subserviência ao modelo europeu. Deixavam-nos, desse modo, a aventura da busca de uma forma moderna e brasileira, isto é, aberta sim às transformações do mundo moderno, mas tentando formular a estas o ponto de vista local.
   Decerto a obra aspirava ingenuamente à superação do atraso, mirando- se no espelho da civilização européia, tanto quanto nossos retardatários do pós-impressionismo, mas a novidade em Tarsila é que detectava o provincianismo e o ridículo da presunção culta que ditavam o apego às fórmulas da academia francesa. Em franca ruptura com o meio, a artista representou um esforço inaugural para compreender a situação da dependência, revertendo a dinâmica injusta do modelo e da cópia, embaralhando as hierarquias aí demarcadas e assim reencontrando, por meio mesmo da apropriação arguta do modelo, a estratégia poética de sua superação.
   Vemos então Tarsila às voltas com um sem-número de dificuldades para rebater o espaço cubista à paisagem brasileira, cujas formas naturais, carregadas de afetos, resistiam de todo jeito à racionalidade, à seriação e ao anonimato da ordem industrial, que bem ou mal açambarcava o país. Todavia, a importância dessa obra para a compreensão da questão moderna brasileira residiria justamente em que essas ambigüidades no enfrentamento dos rigores da superfície cubista traíam, não uma insuficiência pessoal, mas as contradições que se cravariam doravante sobre a sociedade brasileira, defrontada às novas exigências do espaço moderno. Foi a artista, finalmente, que atinou com as condições de possibilidade de uma arte moderna brasileira, na exata medida em que revelou que experimentávamos a modernidade em plena sincronia com a matriz européia, embora não podendo conhecer senão o lado reverso desta modernidade.
   Mas terá sido só mais tarde, a partir de meados do decênio de 50, que o espaço moderno divisado por Tarsila pôde encontrar horizonte cultural propício; generalizava-se e fortificava-se num substrato social graças ao amplo programa de modernização do país. A elaboração teórica de Ferreira Gullar junto ao grupo neoconcreto e também as reflexões estéticas de Hélio Oiticica (1937-1981) testemunhavam o quanto as artes visuais eram capazes de incitar a um pensamento de compreensão do Brasil. É claro que os textos do crítico e os do artista nem de longe sugeriam uma interpretação política ou social da questão cultural brasileira — ao contrário, surgiam no curso heterodoxo de um experimentalismo poético e formal. Além disso, a indagação de ambos, longe de qualquer tom militante, ancorava na noção primordial de um sujeito imanente, de cuja realização dependeria qualquer projeto de transformação social.
   Não se pode negar, todavia, que tal indagação desenvolveu-se como a explicação empírica dos problemas e das possibilidades emancipatórias de um processo de modernização exógeno, pois nas reflexões de ambos tal sujeito só poderia brotar de um contexto como o brasileiro, livre dos compromissos da tradição e disposto à radicalidade dos gestos inaugurais.A originalidade das idéias de Gullar e Oiticica na discussão do processo cultural brasileiro estava, enfim, no duplo alcance de sua visada, porque diagnosticaram ao mesmo tempo a questão "interna", particular, brasileira, e a "externa", na qual interrogaram com ceticismo as perspectivas deixadas pela arte moderna, e propugnaram a contribuição regeneradora da arte brasileira a esse legado. Se de um lado, então, realizavam a necessária especulação interior, de crítica dos conservadorismos locais e de tentativa de compreensão da marginalidade cultural brasileira em pleno surtomundial da expansão moderna dos anos 50, de outro adivinhavam as possibilidades revitalizadoras do Brasil — esse grau zero cultural votado ao moderno — no contexto internacional da arte.
    Não seria por meio dessa reflexão que veríamos a herança construtiva moderna ser redirecionada, em solo brasileiro, para um rumo surpreendente e radical, que consumava a implacável tabula rasa do fetiche-objeto de arte? Não viveríamos simultaneamente ao contexto internacional, nas obras de princípios dos anos 60 de Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape ou Mira Schendel, a experiência da arte como pura ação? Levando-se em conta a relevância de tais contribuições, é um tanto curioso que essa pequena tradição moderna, que se torna ainda mais interessante quando sabemos que já nasceu toda relativizada pelos ímpetos anárquicos e desconstrucionistas da cultura contemporânea, não tenha até aqui obtido reconhecimento do próprio meio e consolidado um aparato reflexivo de interpretação da questão cultural brasileira em geral. Esse é o ponto.
   A arte brasileira moderna e contemporânea constitui um modelo privilegiado de análise do processo de renovação cultural do país dos anos 50 à atualidade; trazê-la à discussão pública parece oportuno especialmente agora, em face da consistência cultural e do dinamismo que tem demonstrado, no exato momento em que nos vemos tragados num novo surto mundial de modernização. Concedamos, a propósito, que este termo permaneça o mesmo, embora certamente devamos reconhecer que ele ressurge isento dos ânimos reformistas que os grandes ciclos de modernização, que arrastaram também ciclos de internacionalização, sempre suscitaram no contexto cultural brasileiro desde os anos 20.


Tarsila do Amaral. São Paulo. 1924




    De volta agora ao exame de nossa situação contemporânea. Todos sabemos que sob a nova ordem internacional, dominada por interesses institucionais de grande envergadura e escala mundial, permitindo a inédita emergência de contextos regionais num cenário até há pouco tempo excludente, a arte brasileira passou a freqüentar os principais pontos do circuito internacional e, conforme se disse, a tornar-se mais visível em seu próprio país. Seria bobagem, é claro, imaginar que essa carreira internacional deva-se a uma circunstância permissiva da globalização — não se pode esquecer que a arte brasileira porta esse dado diferencial em face de tantos outros contextos periféricos, que é sua herança experimental bastante forte, e que cedo ou tarde pressionaria para fazer-se reconhecer publicamente.
   Mas, ao que tudo indica, a recente integração de um paradigma "arte brasileira" ao circuito internacional deverá pôr incessantemente à prova a consistência de nossa jovem história moderna. Já é possível perceber que a pressão de uma cultura "média", globalizada e comercial torna-se cada vez mais forte, tendendo a desagregar toda política local de a densamento. Não é de admirar, a propósito, que a despeito da atual repercussão interna e do reconhecimento no circuito internacional a arte brasileira permaneça institucionalmente tão recalcada em seu próprio país. Tudo leva a crer que as forças que engatam a arte brasileira à dinâmica do circuito internacional são tão impositivas que até certo ponto podem prescindir do desenvolvimento de um sistema de arte local — daí a situação aparentemente incongruente, que concilia o raquitismo institucional vigente com o ativo desempenho da produção artística.
    De todo modo, daqui para frente as exigências de racionalidade, de profissionalização, de legitimidade cultural junto ao mercado e ao público deverão se cravar de modo incisivo sobre nosso meio artístico. As respostas que este dará a tais exigências permitirão avaliar com mais exatidão se isto que tentamos reconhecer historicamente como uma experiência moderna e contemporânea brasileira será suficiente para lidar com o novo estado de coisas, que até segunda ordem diz mais respeito aos imperativos da mundialização dos mercados (e da generalização do consumo) do que a uma efetiva internacionalização da produção cultural (que pressuporia a universalização do acesso às condições de produção). Permitirão dizer
também se conseguiremos constituir alguma dimensão pública para a arte brasileira, para além da intensa exposição pública suscitada pela nova dinâmica internacional. Estamos, como se vê, no meio da travessia.
    Em todo caso, o aspecto extravagante de toda essa situação é que os primeiros sinais do reconhecimento público tenham vindo "de fora" e que, a despeito da consolidação da produção artística, da emergência de um público de arte e de uma relativa profissionalização do meio, permaneçamos muito aquém daquela dimensão pública da arte brasileira. Prova do caráter ambivalente das transformações em curso é, por exemplo, um tipo de ação institucional tão monumental quanto provisório que vem redundando em mega-eventos de arte e tristemente tomando o lugar da ação minguada e irregular das instituições públicas; estas, nos últimos anos, viram-se destituídas de qualquer papel significativo em face dos programas de redução do Estado e parecem ter abdicado mesmo de toda função normativa — de toda política pública, afinal.
    Para nos atermos apenas aos casos mais extremados, citaremos os escandalosos eventos de marketing cultural em que se converteram as exposições de Claude Monet apresentadas em 1997 no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro e no Museu de Arte de São Paulo. Embora não se tratasse de eventos de arte brasileira, indicaram uma mobilização estridente de setores burocráticos e institucionais para forçar a inclusão das artes visuais na pauta nacional, atentos ao rendimento publicitário extra que tais exposições proporcionariam, ao testemunhar o momentoso ingresso do país na rota das mostras internacionais.
   O fato de que os campeões do mercado de arte prossigam sendo os nomes consagrados pela ideologia nacional e populista, que cavalga a imaginação do público brasileiro desde os anos 30 (em que impera, é claro, a figura de Cândido Portinari), é mais uma chave para entendermos o caráter contraditório do processo de modernização em marcha. Afinal, se está havendo certo reconhecimento público em torno de uma imagem da arte moderna e contemporânea brasileira, como explicar que o mercado só se aventure pelos medalhões das gerações de 20 a 40? Nem mencionemos que a arte moderna dos anos 50 e a produção contemporânea mal se vendem nos nichos especializados de mercado...
    Que tipo de esfera pública é esta que vem se abrindo de maneira tão superficial quanto imperativa ao meio de arte brasileiro? Seria possível supor que ela precipitaria (num processo heterodoxo, às avessas) um surto progressivo de institucionalização de nosso ambiente cultural? A essa altura, cabe chamar a atenção para o sentido modesto em que a noção de esfera pública vem surgindo neste texto. Não precisaremos revisitar toda a tradição política do pensamento ocidental desde a Revolução Francesa para entender que o termo "esfera pública" aqui não evoca mais do que o lugar laicizado da cultura que herdamos da modernidade. Evoca também — puxando agora a discussão para as inquietações do século XX — o campo social que a arte moderna passou a constituir desde que, em meados do século XIX, emancipou-se de relações canônicas com patronos ou academias.
    No contexto contemporâneo, o significado dessa esfera pública confundir-se-ia com o de um sistema da cultura, com suas instituições e critérios bem-cravados socialmente, com sua capacidade, enfim, de institucionalizar a produção e fazê-la repercutir publicamente (entendamos o termo instituição e seus derivados num sentido bastante largo, em suas nressonâncias sociais, e não apenas sob um aspecto jurídico ou formal; um mercado, uma história ou uma crítica de arte instituídos convertem-se em instâncias de projeção pública e social do trabalho de arte, do mesmo modo que se supõe que museus, galerias e instituições culturais devam sê-lo).  quanto o sentido do que seja "público" mudou para a cultura contemporânea, desde as demonstrações do narcisismo publicitário e paroxístico da pop, o quanto a noção de público acabou por recobrir e modificar o que tradicionalmente se entendeu por uma "esfera privada", a ponto de ser difícil hoje distinguir o que é jurisdição de uma ou de outra, é outra coisa; para os fins propostos neste texto, importa observar que esfera pública diz respeito a esse lugar relativamente autônomo da produção cultural, onde esta se "institui" socialmente. Ora, já sabemos que a despeito de toda projeção pública permanecemos num estrato superficial de nossa vida institucional.





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      Examinar a arte no ponto de inflexão com suas instituições, quando se instauraria esse campo de relações culturais que constitui a esfera pública, é tarefa difícil. A recorrência tão descarada a variáveis extra-artísticas para alcançar algo da dinâmica mais interna da arte moderna e contemporânea brasileira poderia acabar resultando no recalque dos problemas da forma. Aí está a lâmina fina sobre a qual se desenvolve nossa questão, cujas motivações, entretanto, me parecem urgentes e necessárias. Como estratégia para não andarmos em círculos em torno desse tema compósito, que tem a arte em seu centro mas cujos limites são difíceis de discernir, propomos a partir desse ponto o encaminhamento duplo e balanceado da discussão, de maneira que o exame dos problemas do espaço público, "externo", "cultural", ressoe sempre a experiência mais interna do espaço "formal" confrontado pelas próprias obras.
  Redirecionemos portanto a noção de espaço público (que precede a de esfera pública) para "dentro" dos trabalhos. Isto nos permitirá investigarcomo, historicamente, a arte moderna brasileira reagiu em seus estratos formais ao nosso crônico esquivamento da noção de espaço público. Uma breve comparação com a tradição da arte norte-americana — em que tal mais claramente os rebatimentos mútuos entre a dimensão cultural e a dimensão formal do espaço a que vimos nos referindo.
   É fato bem conhecido que a arte e a cultura norte-americanas em geral têm uma longa história no cultivo dessa esfera pública, cujo ponto mais extremado no universo da arte contemporânea é, sem dúvida, o minimalismo. É possível encontrar suas raízes já no século XIX, quando os pintores românticos (e de extração puritana...), muitas vezes educados no classicismo elegante da escola francesa, tratavam de purgar da arte uma subjetividanigressiva e caprichosa, ou tudo que pudesse, enfim, lembrar a contraproducente "cosmética francesa" das academias, para concentrar-se numa ética dos valores técnicos, profissionais e suprapessoais do trabalho.
  A esse respeito, o crítico norte-americano Leo Steinberg chama a atenção para as esclarecedoras diferenças que detecta entre uma tela do francês Léon Gérome (1824-1904) e outra de seu discípulo americano, Thomas Eakins (1844-1916)2. Ambas tratam do tema do artista e seu modelo, tema por excelência autoprojetivo e portanto profundamente revelador das formas pelas quais as respectivas tradições culturais desses artistas experimentam a questão da subjetividade. Observa Steinberg que significativamente a primeira, que evoca o célebre mito segundo o qual o mármore transubstancia-se em carne pelas mãos do artista, coloca ênfase na recompensa erótica e no dispêndio subjetivo concedidos à genialidade da arte. Já a segunda, que descreve o mesmo tema, coloca o nu em posição secundária, de objeto de estudo e experimentação técnica, e assim redime a arte de suas eventuais conotações eróticas, ligadas ao artifício e ao desperdício, em benefício de uma exaltação ética do ofício do pintor.
     Deixando de lado conotações residuais dessa comparação, que captam o moralismo presente na formação cultural da sociedade norteamericana, interessa notar que o comentário de Steinberg nos informa sobre a passagem eficiente, sem fissuras ou excessos, que a pintura de Eakins promove, da ética privada do ateliê a uma ética coletiva (protótipo de uma vida pública, enfim), edificada sobre a crença construtiva no trabalho. Em outros termos, ela nos sugere uma subjetividade migrando sem conflitos do decoro frugal e burguês do ateliê à ordem supra-individual e anônima, pressuposta numa ética do trabalho. Ética do trabalho que serve, em última instância, de êmulo ao nascente espaço urbano, concebido muito a propósito como um traçado quadriculado e modular, de unidades equivalentes em que os elementos se justapõem "uns após os outros", públicos e anônimos, numa formidável antevisão da lógica minimalista. A comparação entre a pintura de Gérome e a de Eakins nos estimula a pensar, no fim das contas, que muito cedo a arte americana arrebatou o espaço do mundo para dentro dos quadros ou que no limiar da modernidade a arte já pareceu a esses artistas algo dotado de uma dimensão pública e anônima.
     Ora, é quase um clichê afirmar que a sociedade brasileira historicamente sempre demonstrou grande dificuldade para assimilar o formalismo pressuposto na ideia de instituição (quanto mais na idéia de política institucional). Como indicam as célebres análises de Sérgio Buarque de Holanda feitas há mais de sessenta anos, tal dificuldade era já identificada em nossa história colonial como um de seus aspectos culturais mais arraigados:
     Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem duvida a esfera da vida doméstica aquela onde o principio da autoridade menos acessível se mostrou às forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune a qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo. [...] O quadro familiar torna-se assim tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família3
  Ao colocar lado a lado essas experiências tão divergentes do que pode significar a esfera pública para o contexto cultural norte-americano ou para o brasileiro (de resto, um tema clássico na sociologia e na antropologia que tratam do processo formativo das duas jovens sociedades americanas de passado colonial), não pretendemos de modo algum legitimar um velho preconceito colonialista e apontar a deficiência democrática de raiz na formação histórica brasileira, segundo a qual nos provaríamos culturalmente incapazes de absorver o significado do termo.
    É preciso reconhecer que sob muitos aspectos o Brasil até hoje manifesta profunda resistência à dimensão pública da vida social, e tal resistência freqüentemente se exprime de maneira dramática, como sintoma de uma sociedade ainda às voltas com a consolidação de um modelo democrático e republicano. De resto, já comentamos como hoje, em face da integração da arte brasileira ao meio internacional (e ao horizonte da cultura contemporânea), a mesma resistência coloca em risco a oportunidade de firmarmos internamente novas exigências para o campo da arte, no sentido de projetá-la social e publicamente e de assim fazê-la intervir mais decisivamente no curso dos problemas nacionais.
    Nem sempre, porém, a noção de esfera pública se apresentou como sintoma na história da arte moderna brasileira, e parece muito pertinente conceber as ambigüidades que envolvem nossa experiência de uma esfera pública também como uma idiossincrasia cultural, como um tipo de produtividade, no fim das contas. É neste ponto que giramos em 180 graus o foco da discussão, para buscar certas constantes formais na noção singular de espaço que a arte brasileira pôde extrair de sua circunstância histórica. Sob esse novo ângulo, a idiossincrasia revelaria menos uma resistência à dimensão pública da arte do que um apreço pela noção de interioridade, por tudo que diga respeito à construção de uma ética do indivíduo, por tudo enfim que possa se produzir de uma potência pessoal e autodidata (não profissionalizada pelo ambiente cultural, pelas regras de um espaço público da arte). Essa peculiaridade tomou seu sentido mais pleno durante os anos 50, como se viu, na produção do movimento neoconcreto do Rio de Janeiro, quando a tradição construtiva apropriada por estes artistas reclamaria, em primeiro lugar, a reforma interior, psíquica, do indivíduo, e só de maneira muito diluída e secundária pressuporia uma utopia social.
   Façamos um parênteses para entender o alcance dessa atitude. Quando, então, essa dimensão pública passou a introduzir-se como "problema" na história da arte? Sabemos que foi a arte moderna que instalou como pólos antagônicos as esferas do público e do privado, atribuindo-lhes jurisdições bem-definidas e arbitradas por uma série de mediadores sociais: instituições, mercado, público etc. Percebendo-se numa espécie de meiocaminho entre esses dois pólos, ela terá se desenvolvido pressionada pelas exigências de uma subjetividade auto-reflexiva mas igualmente pela exigência de intervir nessa nova dimensão pública do trabalho de arte. Tal dilema de algum modo se formulava para esse artista inaugural da escultura moderna que é Rodin4; ele emperrava o esforço do escultor para concluir suas Portas do inferno, que, encomendadas para integrar o futuro Museu de Artes Decorativas da Cidade de Paris, absorveram-no pelo resto da vida, sem terem jamais ultrapassado as paredes de seu ateliê...
    Mais tarde será a Picasso que a questão se apresentará. Ele é o artista moderno atormentado pela derrocada iminente da representação da figura, da figura como experiência íntegra e profunda de uma interioridade que ele pressentia no fio da navalha, a ponto de se esgarçar. Pois com Les demoiselles d'Avignon não tinha ele desferido o primeiro golpe mortal na representação interiorizada, psicológica, do corpo humano? As dificuldades do artista para usar convincentemente em sua pintura recursos decorativos, que se radicalizados desmembrariam e "coisificariam" definitivamente esses corpos (atitude que evidentemente Picasso jamais tomou), sinalizavam justamente seu aturdimento frente às pressões de uma visualidade pública e anônima, que preparava o surgimento de uma nova imagem do corpo na arte moderna. A obra de Matisse, ao contrário, descrevia a utopia moderna de um espaço privado expandindo-se harmoniosa e "terapeuticamente" para aquela dimensão pública, não apenas sem implicar qualquer perda para a subjetividade, mas conferindo a esta uma inédita potência de realização pessoal.
   Examinemos agora como a arte brasileira lidou com tal antagonismo no primeiro momento em que este se apresentou como questão cultural, isto é, durante a década de 20, na já referida obra de Tarsila. Insistimos nessa artista justamente porque é a partir de seu modernismo problemático, acomodando uma sincera vontade de emancipação formal a ingênuas fórmulas nacionalistas, que se denuncia a perplexidade da arte brasileira, pela primeira vez defrontada às exigências de uma esfera pública. Não importa aqui a reduzida impregnação cultural de tal esfera, ou sua inserção sobretudo ideológica no quadro cultural do período; o que interessa são as respostas peculiares que ela suscitou nessa obra, quando de sua primeira manifestação indireta.
   É claro que não cabe pensar nos anos 20, momento apenas embrionário do movimento moderno no Brasil, em instituições capazes de veicular alguma esfera pública da arte, mas é pertinente supor que as novas condições de vida figuradas na "metrópole" de São Paulo, "condições modernas", "futuristas", como então se dizia, forçavam um novo paradigma de inserção social da arte, ou ao menos conferiam à arte um surpreendente papel ideológico, nacionalista, de legitimação pública do processo de industrialização do país.
   Durante os primeiros anos daquela década, Tarsila havia feito seu aprendizado cubista em Paris, freqüentara o ateliê de Léger e o melhor da vanguarda artística e intelectual que aí se concentrava. Suas telas dos anos de 1924 e 1925 (o período "Pau-brasil") são uma primeira glosa desse seu aprendizado légeriano e uma revelação cultural das formas singulares com que a arte brasileira aclimatara a espacialidade cubista. Pois o que é significativo sublinhar é que nessa aclimatação Tarsila rejeitou precisamente o que na pintura cubista de Léger reportava a arte à idéia de uma racionalidade técnica do espaço moderno: a impessoalidade das formas, o dinamismo funcional que ao mesmo tempo as articula e também as secciona em unidades modulares, a universalidade pressuposta na exigência moderna de uma maleabilidade inesgotável dessas formas etc. Ela terá rejeitado, no final das contas, tudo o que nessas pinturas sugeria a produção de um novo espaço social da arte, público e anônimo, regido justamente pelos princípios da nova racionalidade industrial.
    São pinturas que querem nos fazer crer que as formas geométricas, "maquínicas", com que a artista retratava a emergente metrópole sulamericana de inícios dos anos 20 podiam em terras brasileiras conciliar-se com a paisagem mítica de um Brasil nativo, rural, imerso na sociabilidade afetiva, pré-moderna, dos subúrbios e da comunidade interiorana.
    O resultado é um cubismo que incongruentemente retorna a uma singularização das formas, que as submete à particularidade do ponto de vista regional e que usa a simplificação visando menos à síntese estrutural dessas formas do que à reconversão das feições agressivas e anônimas da nova realidade urbana às cenas míticas e fabulosas de uma tradição popular brasileira. Não é de admirar, portanto, que tudo nessas pinturas de Tarsila pareça próximo e familiar. Quer dizer, quando pela primeira vez a arte brasileira é convocada a exprimir algo da subjetividade moderna, que tensiona e polemiza com sua esfera pública, ela responderá com a afirmação de uma intimidade que, se é verdade que toca a superfície dessa nova realidade, ao mesmo tempo dela se isenta para recolher-se a uma espacialidade afetiva e ao alcance da mão.
    Essa noção lábil da esfera pública é elemento constante em toda a história recente da arte brasileira. Ora como sintoma de um processo cultural em que os mediadores institucionais do campo social se furtam,como vimos, a uma explicitação pública, ora como modo específico deprodutividade, pelo qual o trabalho de arte astuciosamente valoriza o caráter emancipatório de uma subjetividade não totalmente recoberta pela instância pública (cultural) e social, algo como uma esfera privada expandindo- se continuamente, sem prescrições ou limites muito definidos5. Era esse o tom da reflexão neoconcreta...
   É preciso sempre lembrar que as noções de público e privado transformaram-se profundamente desde o advento da arte moderna, de sorte que aquilo que hoje podemos entender desses dois termos deve ter muito pouco a ver com o tipo de interioridade que era colocado em risco na escultura de Rodin ou na primeira obra de Picasso. Consideremos ainda que em princípios dos anos 80 uma multiplicidade de grandes museus e espaços culturais recém-construídos passou a desempenhar papel inédito e extraordinariamente influente, modificando decisivamente as formas de aparecimento público da arte.
    Foi do adensamento dessa malha de instituições (envolvendo um formidável processo de profissionalização do mundo da arte, assim como uma ultra-especializada redivisão do trabalho cultural) que resultou nos anos 90 um meio artístico cada vez mais empenhado em acelerar e otimizar a circulação de exposições e, em contrapartida, cada vez menos atento ao processo de constituição dos trabalhos e à sua singularidade formal. Como se pode imaginar, aproximamo-nos de uma situação de esgarçamento do que restava de "público" no sistema da arte contemporânea — um fenômeno paradoxalmente decorrente do esgotamento do potencial de "exibicionalidade" dos trabalhos...
    Diante disso, a condição pública da arte vem residindo cada vez menos na capacidade institucionalizadora de um sistema da arte e cada vez mais nesse teor abstrato e maleável de "exibicionalidade" dos trabalhos, já que estes devem desempenhar uma agenda incansável de múltiplos aparecimentos internacionais. Essa intensificação de superfície no sistema da arte atrofia também todo empenho de singularização dos trabalhos, visto que eles não logram fixar por muito tempo suas trajetórias individualizadas, abafados pela ascendência espetacular que as grandes vogas culturais têm sobre a interpretação dos movimentos artísticos (a célebre questão das "identidades", que animou o início do decênio de 90, ou a do "corpo" e a do "abjeto", que a sucederam).
   É curioso que o Brasil hoje viva algo dessa situação saturada e ao mesmo tempo a possibilidade de constituir novas estratégias de relação com a instância pública da arte — o que atesta o movimento contrastado e peculiar de nosso processo de renovação cultural. Não cabe esperar que no limiar da globalização, com a universalização de problemas que ela propicia, alguma noção moderna de esfera pública venha a se reconstituir nostalgicamente fora de seu centro, no suposto frescor do solo brasileiro. Mas admitamos que instalada nessa posição singular (participando como que transversalmente do circuito internacional da arte), e portando uma tradição moderna que já nasceu sob o signo do ceticismo contemporâneo, a arte brasileira tem condições privilegiadas para exercer a crítica dos aspectos publicitários dessa nova acepção de espaço público, cultivada no rastro do sistema da arte. Não se pode esquecer, além disso, que uma compreensão muito peculiar de espaço, mais existencial e intrinsecamente desconfiada das qualidades universalistas, cívicas, do espaço público, já vinha se formando aí desde os anos 20.

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   É já consenso no Brasil dizer que é rarefeita, quando não simplesmente inexistente, a presença das instituições na história recente da arte brasileira, embora fosse lícito esperar que, uma vez cumprido pelo ambiente local um processo vigoroso de modernização cultural, elas se multiplicariam naturalmente, consolidando essa espécie de esfera pública da produção artística. Há, portanto, uma história recente e prolífica da arte moderna brasileira que não se fez acompanhar, de modo equivalente, por uma história de desenvolvimento e renovação de nossas instituições culturais...
    A primeira dessas histórias marca o efetivo ingresso da arte brasileira num projeto moderno; é recente, pois seu início poderia ser fixado nos anos 50, quando se produziu uma modernização em larga escala de nosso ambiente cultural; modernização que seria sedimentada, de resto, num amplo programa governamental de crescimento econômico e reforma da vida social. E, de fato, mesmo tratando-se de um momento especialmente produtivo, porque assinalou o desencadeamento das atividades de nossos principais museus modernos6 e da própria Bienal de São Paulo (1951) e porque favoreceu uma inédita aglutinação de forças culturais que se exprimiriam tanto nos movimentos concreto e neoconcreto como no desdobramento de extraordinárias carreiras individuais (Alfredo Volpi, Sérgio Camargo, Iberê Camargo ou Milton Dacosta), suas contribuições cruciais não incitaram o adensamento subseqüente de uma estrutura institucional para o meio de arte brasileiro.
   Mais ainda, cabe notar que o impulso emancipatório da arte brasileira nesse período não está diretamente ligado às iniciativas institucionais então emergentes, de sorte que a articulação dos movimentos concreto e neoconcreto irradiava de "dentro para fora", no contexto intimista das relações pessoais, e graças à afinidade de idéias que num momento preciso incitava a formação de um círculo de relações artísticas e intelectuais, só contingencialmente profissionais ou institucionais. Também as obras de Volpi, Sérgio Camargo, Iberê Camargo ou Milton Dacosta, que alcançaram por essa época sua fisionomia mais original, basicamente independeram de iniciativas institucionais para se firmar, embora de modo circunstancial tanto os artistas daqueles movimentos como os últimos fossem acolhidos nos museus ou galerias que então se organizavam, ou ainda em espaços institucionaisrelâmpago, ocasionalmente usados por eles.
   É, aliás, um tanto curioso observar que a forte herança construtiva que se revelou na produção dos movimentos concreto e neoconcreto dos anos 50 não reverteu para a arte brasileira na assimilação de uma escala pública, na projeção da arte a uma dimensão pública e anônima. Afinal, a história de todos os movimentos modernos de raiz construtiva pulsa segundo a premissa da universalidade das formas, da superação pessoal em direção a essa escala pública e social da arte. Não é então surpreendente que o trabalho de Lygia Clark (1920-1988), partindo de uma atitude inteiramente construtiva e percebendo-se completamente submerso em sua materialidade histórica e social (qualquer um de seus trabalhos resulta da própria operação construtiva, perfaz-se como ação imanente), tenha redundado justo no contrário, como uma contínua expansão interior, arredia a qualquer determinação formal? E esta singularidade de nossa experiência construtiva não se relacionaria, em alguma medida, ao nosso pouco significativo currículo institucional, que assim teria legado aos trabalhos uma noção frouxa dos antagonismos entre a esfera pública e a esfera privada?
   A Bienal de São Paulo, fundada em 1951, talvez seja o único exemplo que se pode oferecer de uma ação institucional duradoura e sistemática, que ao longo dos anos 50, especialmente, alterou de maneira significativa as feições paroquiais de nosso meio cultural — mas trata-se de uma exceção que serviria apenas para confirmar a regra. Diante da falta de continuidade ou consistência na atuação das instituições, que se evidenciaria mais e mais com o passar dos anos, cada nova Bienal que se inaugurava traía o caráter absolutamente extraordinário de sua inserção no meio cultural brasileiro, acentuando a incipiência da rotina institucional reinante. Com isso, ao mesmo tempo que ela nos defrontava ao contexto internacional — o que era essencialmente bom —, denunciava nossa insuportável distância dele, mostrando-nos que éramos incapazes de reter localmente os efeitos transformadores desse contato, na modalidade sistemática e coletiva das ações institucionais.
   Decorridas mais de quatro décadas de sua fundação, e a despeito de seus altos e baixos, ela provou ser, em linhas gerais, um fator de renovação do ambiente artístico brasileiro, sobretudo porque ao longo dos anos fez ver que a produção artística brasileira era parte integrante, no fim das contas, de uma "produção internacional", frente à qual tínhamos nos sentido por tanto tempo em inelutável assincronia. Com isto, gradativamente, a Bienal incentivou um penoso processo de autocompreensão da arte brasileira, na medida mesma em que impôs o confronto com o que de melhor (e de pior) havia nos contextos culturais avançados. Hoje, frente ao inédito horizonte de integração da arte brasileira a um circuito internacional, pode-se dizer que a grandiosidade do modelo Bienal adquire tom prepotente e perdulário num país como o Brasil. Pois de dois em dois anos a mostra continua a reacender expectativas e interesses heterogêneos, muitas vezes extraculturais, difíceis de ser apaziguados mesmo em face do eventual sucesso de cada exposição ou da representatividade das forças culturais que ela possa envolver. Lembremos, a propósito, que cada uma de suas edições implica complicada tarefa de acomodação de interesses políticos e institucionais, o que de resto é a contrapartida do fabuloso aporte de recursos privados mobilizado por ela, em meio a uma realidade cultural cultivada na carência.
  Há, enfim, uma evidente desproporção entre a monumental quantidade de esforços e expectativas que histórica e simbolicamente sempre estiveram associados à imagem da Bienal de São Paulo e a relativa resignação ou complacência que no Brasil ainda hoje se reserva à rotina da vida institucional, justamente onde poderia se estratificar, a longo prazo, um repertório de critérios e valores ligados ao reconhecimento público da produção artística.

  Revelando facetas ora produtivas, ora paralisantes, foi dessa maneira forjando-se essa formidável vocação brasileira para o autodidatismo e o informalismo nas relações sociais, que se exprimiu no tipo de relação frouxa e inconstante que a produção artística desenvolveu com seu ambiente institucional ou com isto que configuraria sua esfera pública. Não é que não tenham surgido nas décadas posteriores, de 60 e 707, iniciativas esporádicas de pequenas galerias ou instituições públicas que apostassem numa ainda pouco reconhecida arte moderna brasileira, ou que se empenhassem numa atuação mais experimental. Mas a questão é exatamente esta: por que tais iniciativas tiveram vida tão curta, ou, por outra, por que não pressionaram a constituição progressiva de algo como um sistema de arte no Brasil, ou ao menos uma dinâmica de circulação pública da arte, com seus critérios e protagonistas culturais bem-marcados (entre eles, museus, mercado, crítica)?

  É incrível imaginar, por exemplo, que durante os anos 50 e 60 intelectuais como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar estivessem disponíveis nas páginas dos nossos principais jornais, introduzindo um público neófitona aventura experimental (e àquele momento ainda imponderável) de uma arte moderna brasileira, e que essa experiência pioneira não tenha tido continuidade, não tenha se generalizado a ponto de garantir hoje algum prestígio público à atividade da crítica.

Certamente seria possível apontar, nessa história recente da arte brasileira, outros relatos de convergências luminosas entre a produção artística e iniciativas institucionais — mas o problema reside precisamente em que foram tópicas, ocasionais. Cabe lembrar, por exemplo, que durante a segunda metade dos anos 70 — anos difíceis de ditadura, de restrições à atividade artística e intelectual — o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo criavam "espaços experimentais", como resposta às pressões de um ambiente artístico que buscava a duras penas escapar ao solipsismo cultural.

Além disso, por toda parte multiplicaram-se "espaços alternativos", um termo muito difundido no contexto sufocante e oficialista dos anos 70, designando todos aqueles espaços extra-institucionais (bares, cinemas, cine-clubes, galpões desocupados) que acolhessem produções sem acesso ao mercado ou ignoradas por um universo institucional na maioria dos casos sob a gestão ferrenha de espíritos burocráticos.

Dessa articulação de frentes diversas — em que a presença institucional não foi, decididamente, o fator determinante — amadureceu umannova geração de artistas8 que hoje forma o universo mais significativo da arte contemporânea brasileira. Outro fenômeno a relativizar ainda o papel das instituições foi a gestão "amadorística" de certas instituições nos primeiros anos da década de 80. Àquela época, órgãos culturais ligados ao Estado eram momentaneamente ocupados por artistas e intelectuais que viriam a implantar importantes projetos voltados à arte contemporânea. Seus diretores ou colaboradores eram indivíduos mobilizados pela idéia de consolidar uma arte contemporânea brasileira, não profissionais, oriundos portanto de áreas externas à carreira institucional, indivíduos que percebiam no Estado, circunstancialmente, a oportunidade de aglutinar energias e estimular trabalhos experimentais. Foi dessa maneira tão peculiarmente brasileira que projetos artísticos radicais acabaram sendo subvencionados por ministérios ou secretarias de cultura de âmbito estadual ou municipal, patronos muito mais freqüentemente de projetos conservadores e populistas.

Consideremos, de resto, que no Brasil (exceto pelo caso da Bienal de São Paulo) não há uma tradição de investimentos privados na área cultural. Não foi senão a partir dos anos 80, com a crescente internacionalização do ambiente artístico, que começou a se formar um gosto pela arte brasileira pós-anos 50 e a verificar-se certa disponibilidade para investimentos culturais, ao que parece sinalizando uma tímida renovação das elites nacionais, pouco a pouco tornando-se mais exigentes em matéria cultural.

Pode-se dizer que a geração mais recente de artistas brasileiros, emergindo em princípios dos anos 80, encontrou um histórico não muito antigo e nem mesmo estável de experiências envolvendo arte e instituição. Mas a despeito das descontinuidades que sempre caracterizaram tais experiências, elas somaram à arte brasileira contemporânea uma profunda educação política, pela qual ela pôde se apropriar estratégica e momentaneamente de espaços institucionais todas as vezes que foi necessário aglutinar forças culturais dispersas.

Talvez o caráter pouco definitivo dessas experiências institucionais, quer dizer, sua fraca capacidade normativa, tenha levado a arte brasileira a perceber-se como dotada daquela natureza essencialmente autodidata deque já falamos, pela qual ela poderia buscar uma inscrição cultural mais imediata, um corpo-a-corpo com sua interface pública. Interrogando criticamente a tradição clássica que emana da idéia de "público", a experiência mais notável de espaço na história recente da arte brasileira tenderia a realizar-se de maneira negativa — não açambarcável pela norma cultural pressuposta na noção de espaço público.

Cabe agora perguntar se essa experiência, que historicamente tem forte componente política, poderá repolitizar as relações da arte com o espaço público (que até aqui têm sido eminentemente funcionais, como vimos) e, quem sabe, infundi-lo da densidade social que sempre foi tão crucial à arte brasileira. Desse gesto certamente dependerá o reaparecimento da história da arte moderna e contemporânea brasileira para o debate dos principais problemas da atualidade nacional.


(1) Texto produzido originalmente para Lapiz — Revista Internacional de Arte (Madri, ano XVI, nº 134-135, julho de 1997), revisto e complementado especialmente para esta versão
brasileira.
(2) Steinberg, Leo. Other criteria. Nova York: Oxford University Press, 1972, pp. 57-58.
(3) Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984, pp. 49-50 (grifos meus).
(4) Cf. Krauss, Rosalind. Passages in modern sculpture. Cambridge, MA: MIT Press, 1987, pp. 7-37.
(5) É ilustrativo notar, a propósito, a espécie de desconforto, pouca desenvoltura ou falta de escala que no geral a escultura contemporânea brasileira demonstra quando confrontada ao espaço urbano — peculiaridade a qual corresponde a miséria das políticas culturais públicas nessa área (obviamente, a condição pública da arte não se manifesta apenas no espaço urbano — pode mesmo acontecer que um trabalho de arte erga-se com intimismo à escala de tal espaço; na arte brasileira, entretanto, a falta de hábito no enfrentamento do espaço urbano apresenta-se como índice de uma baixa convicção cultural na noção de espaço público). Em todo caso, não seria justo afirmar que tal desencontro das esculturas com sua interface urbana surja sempre como insuficiência; conforme vimos, há produtividade poética quando as obras parecem esgueirar-se de uma escala pública ou mesmo quando parecem ostensivamente postas para um espaço aquém ou além desta. E sob essa perspectiva as manifestações de desencontro podem ganhar mesmo sentido crítico. E fato notório, de resto, que as autoridades das cidades brasileiras geralmente não se orientam por qualquer critério urbanístico ou cultural quando ocorre de instalarem esculturas em espaços públicos — quase sempre trata-se de doações ou iniciativas particulares beneficiadas pelo interesse público. Há, entretanto, raras exceções (que surgiram com um caráter extraordinário, sem portanto precipitar ações sistemáticas), de projetos especialmente destinados a tal fim, nos quais nos baseamos para fazer estes comentários. Consideremos em primeiro lugar o (a essa altura, o que restou do) famoso Parque de Esculturas da Praça da Sé, em São Paulo, de finais dos anos 70, e o mais recente projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro, que a partir de 1996 redundou na implantação de inúmeras esculturas na cidade.

(6) A primeira galeria de arte moderna do Rio de Janeiro surge em 1945 (Galeria Askanazy) e em São Paulo, no ano seguinte (Galeria Domus). Em 1947 é fundado o Museu de Arte de . São Paulo Assis Chateaubriand e em 1948 são criados os museus de arte moderna de SãoPaulo e Rio de Janeiro.

(7) Anos que presenciaram, com a dispersão das grandes linhagens contemporâneas que haviam se configurado nos anos 50-60, o severo isolamento cultural brasileiro imposto pelo regime militar durante toda a década de 70, resultando numa atitude geral de introspecção e perplexidade do ambiente artístico; o penoso processo de reorganização da vida artística e intelectual desdobrado a partir da segunda metade dessa década e adentrando pela seguinte; e, fenômeno recente, o gradativo processo de internacionalização encetado a partir dos anos 80, que veio desde então produzindo mudanças rápidas e de conseqüências ainda não completamente discerníveis no horizonte da cultura contemporânea do país.

(8) Eram esses artistas, dentre outros, Cildio Meireles, Carlos Zílio, Antonio Manuel, Artur Alípio Barrio, Waltercio Caldas e Iole de Freitas, no Rio de Janeiro; José Roberto Aguilar, Carmela Grosz, Regina Silveira, Anésia Pacheco Chaves, Nelson Leirner, Carlos Fajardo e José Resende, em São Paulo.

Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 1998.

Sônia Salzstein é crítica de arte.

Publicou nesta revista "Resistindo ao presente" (n° 43) Novos EstudosCEBRAP N.° 50, março 1998 pp.169-189 MARÇO DE 1998 189









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