sábado, 30 de outubro de 2010

Nuno Ramos, Oiticica e o Brasil Diarréia

Martha Telles


Postei a matéria com Nuno Ramos à qual me referi em quase todas as últimas aulas. Nela, o artista explica um pouco do seu trabalho na 29ª Bienal de São Paulo, Arte e Política. A obra Bandeira Branca instalada no vão central do prédio inscreve-se na tradição (se já é possível falar em tradição de arte Brasil) do pensamento crítico de arte em nosso país. Nuno se percebe herdeiro e continuador dessa tradição, em meio a um momento de pouca reflexão nacional. “Acho que a gente está vivendo um tipo de desenvolvimentismo. Todo mundo eufórico, mas todo mundo muito cego. Quis romper isso com uma espécie de mau agouro que os urubus vão dar para o vão central, que é uma das coisas mais bonitas que o Niemeyer já fez, diz o artista.



Goeldi e Hélio Oiticica são referências explícitas em Bandeira Branca, que remetem a facetas menos luminosas e marginais de nossa cultura. Em Oiticica, particularmente nos Penetráveis, formula-se uma síntese de seu pensamento artístico e político. Como analisa Carlos Zílio, no texto Da Antropofagia à Tropicália, esse penetrável é a vivência da visão da cultura brasileira como “diarréica”. Em Brasil Diarreia, Oiticica identifica como nossas características impensáveis para um Brasil da década de 1960, em que predominava, no âmbito da cultura, a concepção do nacional popular. “A formação brasileira, reconhece-se, é de uma falta de caráter incrível: diarréica; quem quiser construir (ninguém mais do que eu ama o Brasil!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia, mergulhar na merda”. Seus trabalhos fazem uma incursão sobre os mitos populares. A estratégia é desarticular a estrutura de tais imagens a fim de provocar uma tensão interna que produza um questionamento dos participantes.


Em Tropicália (1967), o espectador é convidado a “penetrar” em corredores apertados e labirínticos, em tudo semelhantes a barracos de favela. Nesse ambiente sem saída, que não leva a lugar algum, escuta sons de fora e de dentro, que mais tarde  se revelam como o de uma televisão. Caminha-se por estruturas fixas geométricas que remetem às obras de Mondrian. São imagens táteis expandidas com a vivência do andar na areia, nas pedrinhas e nos tapetes espalhados pelo chão. “Eu queria nesse penetrável fazer um exercício de imagens em todas as suas formas”, declarou Oiticica. Os elementos imagéticos presentes no trabalho, como bananeiras e araras, a construção pobre típica das favelas, representavam o ambiente tropical e o lado “negativo” da sociedade brasileira, marginalizada nos morros. Entretanto, tais imagens idealizadas eram desconstruídas no processo de vivência, no apelo a todos os sentidos proposto no trabalho. Nas palavras de Hélio, “Tropicália era para definitivamente colocar de maneira óbvia o problema da imagem... Todas as coisas de imagem óbvia de tropicalidade, que tinham arara, plantas, areia, não eram para ser tomadas como uma escola [...] Foi exatamente o oposto que foi feito, todo mundo passou a pintar palmeiras e fazer cenários de palmeiras e botar araras em tudo”.

Tropicália sugere uma reflexão sobre o surgimento da cultura de massa no Brasil, o que colocava a necessidade de formular nova relação da arte local com a trama do tecido cultural brasileiro. Contra a diarreia geral, o artista propõe a noção de experimental: “que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também de transformação no campo dos conceitos-valores vigentes; é algo que propõe transformações no comportamento contexto, que deglute e dissolve a coni-convivência. No final, Hélio sintetiza sua fórmula: "No Brasil, portanto, uma posição crítica universal permanente e experimental é elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarreia."


Nuno Ramos reclama para seu trabalho o diálogo com a noção de experimental, tal qual formulada por Helio Oiticica e presente nas obras de Goeldi, Lygia Clark, Cildo Meireles, Tunga, Antonio Dias, para ficar com alguns. Bandeira Branca propõe uma reflexão crítica sobre as imagens nacionais consagradas como nosso modernismo, em particular com o musical e o arquitetônico. A tensão entre a face agourenta de nossa cultura e as belas curvas de Oscar Niemayer é elemento-chave do trabalho. De genialidade inquestionável, a arquitetura moderna de Niemeyer apresenta uma característica singularíssima, que muito fala de nós. Suas formas etéreas desvinculam a expressão construtiva para se entregar a gestualidade do desenho, evitando assim explicitar tensões concretas de sua espacialização. (ver dissertação Ana Paula Gonçalves Pontes, referência abaixo). Como dirá Argan, é exatamente a propriedade projetiva que confere um caráter autocrítico à forma. Tal propriedade seria responsável pela capacidade de sublimar na arte uma ação no mundo, ou seja, de recriar uma realidade.

Os urubus enlutados de Nuno desconstroem a imagem de um Brasil que vive a euforia da era do consumo no país de hoje. Nas palavras de Nuno, “é um momento de grande aceleração sem direção, um segundo desenvolvimentismo. Também há uma cegueira e falta de capacidade de projetar. É uma espécie de agora dilatado que o Brasil sempre vive. Somos o 'nunca antes neste país' eterno”. Evocam o lado mais sombrio, mais reflexivo, tencionando a imagem lúdica, otimista da obra de Niemayer. Uma desconstrução de uma imagem nacional.
Bandeira Branca é ainda uma crítica ao atual regime de hiperinstitucionalização da arte. É um antipenetrável, o espectador fica do lado de fora. A experiência apenas é possível pela visão através das grades, algo semelhante ao atual regime de fruição da arte que cada vez mais se refere à sua história e linguagem. Mas disso falaremos mais adiante.
Referencias bibliográfias e Links
PONTES, Ana Paula Gonçalves A Monumentalidade Flutuante de Oscar Niemeyer. In Diálogos Silenciosos, arquitteura moderna brasileira e tradição clássica. Dissertação de Mestrado. PUC-RJ. 2004( tese abertas PUC)
ZILIO, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. Revista Arte & Ensaio. EBA/RJ N 18, 2009.








sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Crítica de Arte


Editorial
Por: Camila R., Camila S.,
Gabriel F. e Tatiana G.


Coube-nos neste espaço abordarmos uma esfera do universo artístico que – ainda – é passivo de muitas mudanças e contradições como veremos: A crítica.
Em um breve passeio pela história para melhor nos situarmos, adentramos o século XVIII e nos deparamos com a iluminada figura de Denis Diderot e um pouco mais a frente Charles Baudelaire.
Esse primeiro crescia no meio literário e filosófico da época e era um grande fruidor das artes. Diderot pode ser mais lembrado pela massiva participação na elaboração da Enciclopédie, no entanto abordaremos aqui a sua participação naquela esfera que nos propomos a discutir. “Diderot começa a delinear uma atividade que seria fundamental no século seguinte: a crítica de arte. (...) Em Diderot encontramos o texto sobre a oba com julgamentos pessoais e inclinações de gosto que são patentes. É uma crítica nascente, onde o autor expõe sua opinião estabelecendo o juízo de gosto
[1]. Um século mais tarde ocorre uma reformulação no que havia como texto crítico de arte. Falamos agora da interferência de nossa segunda figura, Baudelaire. O texto, com Baudelaire, ganha uma nova concepção, percebe-se a possibilidade de discussão, pois as obras são vistas como uma experiência.
Enquanto com Diderot existe uma maior descrição da obra, um texto mais opinativo, em Baudelaire vemos um interesse maior em questões como a cor, tonalidade, as linhas. “Ele [Baudelaire] já propõe indagações no campo das conceituações que, mesmo partindo da obra, sinalizaram uma diferente postura crítica, prenunciadora da modernidade.”
[2]
Ambos, Diderot e Baudelaire são um pouco mais lembrados pelo fato de terem dado o primeiro passo para o início da crítica e o desenvolvimento da mesma, respectivamente. Há, porém uma série de outros personagens que podem ser citados, como Stendhal, Théophile, Émile Zola e por aí segue a lista.
Traremos mais adiante um bate-papo com duas figuras da cena crítica atual brasileira: Rodrigo Naves e Vera Beatriz. Siqueira. Com eles discutiremos assuntos diversos no que diz respeito à crítica.


[1] Da Luz, A.A. Uma Breve História dos Salões de Arte – da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama, 2005.
[2] Idem ao 1.




1. A crítica de arte desempenha um papel de extrema importância dentro do seu sistema, ainda que esteja em constante mudança, tal qual a arte em si. Mas nem sempre essa crítica se deu da mesma forma como é entendida atualmente. Quando surge o conceito de crítica como o conhecemos hoje? E como se relacionava inicialmente com o sistema de arte?

Rodrigo Naves - Não sou um especialista nisso. Até onde eu sei a crítica de arte, mais ou menos, próxima ao que conhecemos hoje surge com Diderot no final do século XVIII. E depois ganha uma feição ainda mais próxima da que fazemos no século XIX com Baudelaire (importante poeta francês). E a questão básica é o surgimento de preposições (...) com uma espécie de relação de alguém que julga, que analisa, que avalia um determinado trabalho, repousa, mais ou menos, sobre a necessidade de que as pessoas tenham acesso à obra sobre a qual se escreve. Portanto, é necessário que haja órgãos, mais ou menos, públicos como o jornal, por exemplo. E, por outro lado que as obras estejam passíveis de serem vistas, porque se eu escrever sobre uma coisa que você não pode ver evidentemente isso não é crítica, porque os meus juízos não podem ser cotejados com os seus. Então, o que ocorre é que há, sobretudo a partir do século XVIII na França, uma intensificação das exposições anuais (...) que, portanto, é a condição de que as obras se tornem visíveis e visitáveis e, por outro lado, um investe peso na imprensa ainda maior. É em função da convergência desses dois aspectos centrais que passa a ter essa relação mais corpo-a-corpo com o trabalho de arte, (...) uma relação mais individual com obras individuais em torno das quais se formulam certos juízos, que fazem análises que não são apenas temáticas, que passam a existir análises, também, mais formais.

Vera Beatriz - Podemos pensar em vários começos para a crítica de arte. Por exemplo, podemos pensar em Baudelaire, poeta e crítico que, na minha opinião, formula o conceito moderno de crítica, especialmente em um texto sobre uma das exposições internacionais em Paris na qual, diante de obras chinesas formula seu espanto e afirma “preferi me refugiar na mais absoluta ingenuidade”. Essa ingenuidade construída, de segunda ordem, é essencial para o crítico de arte a partir da modernidade, que se vê diante de uma obra desafiadora dos padrões de gosto. Seus textos, como os de Balzac e Zola, na mesma época, falam desse contato direto, de um embate mesmo entre o crítico e a obra. Podemos retroceder um pouco e pensar em Diderot, na virada do século XVIII para o XIX, com sua crítica eivada de sentimento e subjetividade, ainda que delimitada pelos critérios mais ou menos comuns do gosto acadêmico. Ou nos filósofos românticos desse mesmo período, como Novalis, Schelling ou Schlegel, que encontram na arte uma possibilidade de confronto crítico com o mundo. Poderíamos retroceder ainda mais, chegando a Vasari, no Renascimento, que escreve as Vidas dos artistas da época. Ainda que mais comumente relacionado à História da Arte, a idéia de que a história que ele propõe se baseia num critério de juízo, numa hierarquia dos trabalhos artísticos (o que é bem, o que é melhor, o que é pior), demonstra a íntima relação de origem entre história e crítica de arte. Ou seja: há muitos possíveis começos. Talvez a questão mais relevante seja o seu fim (ou fins possíveis). Pois o que vemos hoje é uma crítica cada vez mais fraca, geralmente identificada com uma mera descrição do trabalho ou com a sua justificativa.

2. Qual você acha que era a importância da crítica no processo de significação da obra. Você acha que ela ainda tem esse papel?

RN - Hoje em dia, eu acho que, crescentemente, a importância que o crítico atinge, sobretudo fora do Brasil onde ela nunca foi muito significativa, esse peso vem se transferindo para a figura dos curadores e das instituições, ou seja, houve um crescimento enorme de instituições culturais, museus, centros culturais, etc. E mais do que propriamente a importância da relação entre as análises dos trabalhos de arte e a inserção das obras de arte, o que tem hoje é a tentativa, sobretudo por parte dos curadores associados a essas novas instituições de reunir os trabalhos em exposições mais temáticas em torno de conceitos que podem ser os mais estapafúrdios como corpo e memória, a dor e a significação, a vida e a morte, etc. E essa espécie de quase adaptação dos trabalhos de arte de certos conceitos anteriores que faz crescer, de certa maneira consagrados por certas instituições e que passaram a ter, pelo menos de um ponto de vista mais amplo, o papel da crítica. Quer dizer, a crítica tal como vinha sendo feita desde os modernos continua a existir, mas parece que com muito menos significação, muito menos peso do que já teve.

VB - A crítica de arte moderna (ou modernista, como alguns preferem, embora particularmente não goste desse termo) se fundamenta na idéia de que o valor da obra é intrínseco a ela. Ou seja: há uma qualidade, muitas vezes indefinível, mas que conserva traços objetivos, da obra e esta lhe confere o valor. Esta qualidade é a sua contemporaneidade, a sua capacidade de responder criticamente ao tempo em que se insere, com relevância cultural e originalidade. No mundo contemporâneo, a crítica passa formular um valor que não se acredita mais que está no objeto – até porque este, muitas vezes, nem se pretende mais um objeto especial, diferenciado – e sim que é algo que se agrega ao objeto, depois de sua realização (e independente dela). Assim, a crítica torna-se, basicamente, um discurso cultural, entre tantas outras formas de discursos culturais. No Brasil, essa situação me parece mais trágica, pois nunca tivemos uma crítica de arte forte contra a qual lutar e se diferenciar. Assim, ficamos num perpétuo vazio. Porém, mantenho-me otimista, acreditando que a velha tarefa de valorizar objetos estéticos é ainda importante, capaz de participar do processo de atribuição de significação cultural à obra.

3. Nos anos 80 surge a figura do curador, muito ligada a um momento de hiper institucionalização da arte. Poderíamos dizer que esse novo agente do sistema, o curador, diferentemente do crítico, constrói temáticas e narrativas para exposições?

RN - Sim. Porque o que o que eles fazem basicamente é isso. Eu não saberia dizer melhor. É criar narrativas. O que faz com que, eu acho pelo menos, surja um problema um problema muito forte que é uma espécie de redução muito grande da singularidade dos trabalhos, eles passam a adquirir uma legibilidade em função desse encaixe em certas narrativas que retira deles qualquer especificidade ou retira, pelo menos, muito de sua especificidade. Não acho que seja uma submissão absoluta nesse discurso, nessa narrativa, mas é, mais ou menos, nessa direção e eu acho isso muito complicado. Mas que digamos, cria-se um discurso dominante que eu acho indiscutível. Basta ver nas Bienais de São Paulo, (...) em espaços públicos e em galerias para ver como isso é verdadeiro.

3.1) Pelo fato deles criarem essas temáticas, eles criam uma função mais informativa, e, portanto, o público atual se interessa mais, porque é um público que busca mais informação, hoje em dia...

RN - Mais informação eu não diria, porque em geral essas narrativas que de alguma maneira são sintetizadas nos títulos não são propriamente informativas. Eu acho que são tentativas de fazer com que o trabalho de arte dialogue com questões contemporâneas, sei lá, vou pegar um exemplo banal: A penúltima Bienal que se chamava VIVER JUNTO, então, do que se tratava em meio a uma série de conflitos a Iugoslávia, a Chechênia, enfim, um mundo de conflitos, a nova configuração da Europa depois da guerra fria, outras regiões, eles se propunham um tema que seria uma espécie de pacifismo. Mas, que não me parece que seja uma questão propriamente capaz de identificar o sentido da produção contemporânea e você se importa que seus trabalhos sejam mais ou menos nesse discurso e faz com que as obras encaixem nesse discurso. E não acho que seja propriamente uma dimensão informativa. De algumas maneiras seria. Seria, um pouco, aproximar a arte de certos problemas mais do dia-a-dia. Agora, não sei se seria propriamente um caráter informativo, seriam denúncias de caráter maior da atualidade das artes, mas me parece que muito em detrimento até do aspecto artístico dos trabalhos, porque se tornam muito boneco de ventríloquo onde passam a dizer coisas através deles e não por eles mesmos.

3.2) Você diria que o curador tomou o lugar do crítico ?

RN - A figura do curador sempre existiu. É uma figura absolutamente oculta, ou seja, você ia ver uma grande retrospectiva do Rembrant, do Matisse, do Picasso ou do Duchamp e no geral nem notava quem era o curador. Quer dizer, o curador era uma pessoa que conhecia profundamente a obra de um grande artista ou de uma vertente como o Surrealismo e de maneira discreta se esforçavam para realizar uma mostra significativa ou de um artista ou de uma vertente artística. Hoje em dia, é rigorosamente ao contrário, você em geral só vê a mão do curador e os trabalhos parecem adquirir uma função estética (do modo que são usados pelo curador). Então, a noção de curadoria é extremamente antiga (...) e adquiriu um caráter novo. E eu não acho que eles tomaram o lugar da crítica. Acho que continua havendo críticos, enfim, muitas vezes críticos são curadores e continuam fazendo seu trabalho de forma digna. Eu acho que passaram a ter mais relevâncias e mais peso, mais determinantes na discussão. As coisas continuam a existir separadamente.

4. Como você poderia definir a diferença entre o crítico e o historiador?

VB – Na realidade, as diferenças são mais disciplinares do que propriamente metodológicas. Ambos, crítico e historiador, trabalham a partir do juízo, desenvolvendo um procedimento basicamente crítico. Além disso, acho que a tradicional divisão entre Crítica/arte contemporânea e história/arte do passado é francamente equivocada. É possível escrever um texto crítico sobre uma obra tradicional ou fazer a História da Arte contemporânea. A História da Arte, porém, como campo disciplinar, precisa lidar com a construção rigorosa de conceitos históricos. Ou seja: o juízo crítico se destina à criação de séries históricas de objetos, ainda que estas reúnam objetos de vários períodos históricos. Já a Crítica de Arte pode lidar com conceitos um tanto mais metafóricos, frequentemente mais relacionados a problemas estéticos do que históricos. Há também diferenças do ponto de vista poético ou formal. Um texto crítico geralmente é mais curto e pode dispensar certas referências ou citações. O argumento histórico-artístico requer um texto diferente, com outra relação com a tradição dos estudos das obras que analisa. Mas são todas diferenças, como se pode ver, de forma, e não de procedimento.

4.1) Você se considera qual dos dois agentes?

RN - Olha, até pelo fato de no Brasil não haver nenhuma grande tradição nem em história, nem crítica o que eu e várias pessoas fazemos, inclusive a Vera, é fazer um pouco os dois, porque a gente se vê meio forçado a também preencher lacunas que não foram preenchidas em relação ao século XIX ou começo do século XX. Existe, até hoje, no Brasil uma série de artistas que não foram estudados, então eu me vi meio forçado a ser um pouco os dois, a fazer a análise, na medida das minhas possibilidades, do século XIX e do começo do século XX (...). Agora, eu acho que isso é um pouco uma contingência brasileira, eu acho que alguns outros críticos fora do país, em geral dizer isso também era um pouco atrasado, num certo momento os EUA, no outro a Itália.

4.2) ... Aqui no Brasil a diferença entre os dois é difícil de enxergar, porque as pessoas começam a fazer um pouco de ambos...

RN - Acho que sim, acho que sim. Não sei se daria para pensar isso de forma ampla. Eu acho que, o Ferreira Gullar, o Mário Pedrosa, talvez tenham sido mais críticos propriamente. (...) É um pouco uma espécie de leitura da arte moderna que desemboca neles. Então, é como se fosse quase uma espécie de história crítica, no sentido de que tem uma dimensão muito forte. Agora, sei lá, pessoas como eu, Ronaldo, Paulo Sérgio, a Vera, enfim, muitas pessoas aqui no Brasil acabam sendo forçados a fazer uma revisão da nossa história ou moderna ou pré-moderna com vista que certas análises sobre os contemporâneos façam sentido. Em países em que a publicação, estudos, análises é mais densa, tem mais gente envolvida nisso, essas análises seriam desnecessárias. Aqui elas não foram feitas então, enfim não é nenhuma escolha, eu acho, nossa.

5. Todo o crítico estabelece alguma relação com o artista ou a obra de seu estudo. Como se constrói essa relação? De que forma fazem essas escolhas?

VB - Há milhares de formas possíveis. Posso apenas falar da forma como eu me relaciono com os objetos, que acredito ser a maneira mais honesta de relação com a arte e com o leitor dos meus textos. Citei Baudelaire e sua “ingenuidade” construída (imaginem se Baudelaire, cultíssimo, seria ingênuo... ser ingênuo para ele devia ser realmente um esforço considerável), porque gosto de me relacionar dessa maneira direta com o objeto artístico como uma presença. Presença sempre estranha, no sentido de algo que não posso captar, que escapa de mim, que me desafia. É claro que isso exige do objeto certa potência estética ou expressiva, que acaba delimitando as minhas escolhas. E, de certa forma, me faz correr o risco do ridículo, exigindo textos poeticamente comprometidos com a obra. Entre todos esses riscos, vou traçando minhas escolhas a partir desse embate direto, epidérmico com o objeto de arte.

6. Mario Pedrosa e Ferreira Gullar, que já foram citados, foram grandes nomes que redigiram artigos de arte para o jornal, cada qual construindo seus próprios critérios de avaliação. O caráter das críticas jornalísticas, no entanto, mudou drasticamente, tornando-se muito mais descritivas e superficiais. As críticas rigorosas desapareceram do jornal e da mídia comum? Ou foi o público de arte contemporânea que desapareceu?

RN - Acho que diminuiu. De uma forma geral os jornais passaram a escrever para um público muito mais amplo (...). Se você pegar um jornal dos anos 60, 70, por exemplo, e um jornal de hoje os parágrafos ficaram muito menor, os textos têm que ser muito mais claros, enfim eu acho que uma série de aspectos às vezes até determinados por critérios de vendagem, forçaram um pouco os trabalhos a se simplificarem. Sem dúvida isso levou a certo barateamento da crítica que às vezes ou é apenas analítica, noticia ou às vezes são trabalhos, artigos mais opinativos, mas enfim eu acho muito mais usado. Agora por outro lado nunca as artes visuais tiveram tanta presença pública no Brasil como têm hoje. Antigamente pouquíssima gente vivia de arte. No Rio eu acho que vocês sofreram um pouco com a perda da capital, a situação dos museus aí não é das mais favoráveis, mas aqui melhorou muito. Mesmo aí eu imagino. Então, eu acho que houve uma mudança, as pessoas têm lugar para escrever, folders de galeria, livros, enfim, tem mais gente escrevendo hoje, muito mais do que já tinha anteriormente, agora você tem toda razão em relação ao jornal especificamente, houve um problema.

VB - Realmente a crítica em jornal mudou muito. Mas acho que o jornal mudou muito. Hoje é tudo mais abreviado e a própria crítica ficou mais ligeira, mantendo apenas sua função indicativa. No caso das artes visuais nem temos aquele nomes meio icônicos como na crítica teatral e musical, aquela figura do crítico antipático que desgosta de tudo. Ficamos, em realidade, sem qualquer parâmetro cultural de valorização das obras, especialmente pelo próprio desmantelamento da crítica de maior circulação. Particularmente acho que a ditadura foi um golpe fatal num sistema que mal começava a engatinhar. Algumas poucas exposições importantes, museus que começavam a criar alguma tradição, críticos que mal haviam formulado critérios para a incorporação cultural dos trabalhos artísticos – tudo isso foi abortado por um bando de militares que viam na arte e na cultura uma ameaça ao sistema. Mesmo o badalado boom do mercado de arte nos anos 70, respondeu, como se sabe, aos critérios tradicionais de gosto e distanciaram dramaticamente o público da vitalidade criativa da época. Hoje em dia, parece que o sistema está se adensando, não apenas pela tradição adquirida pelas instituições museológicas, pela valorização comercial de algumas obras no mercado local e internacional, mas também por causa dos cursos universitários de graduação e pós-graduação, nos quais a crítica ganha novo e estimulante espaço institucional. Em termos numéricos absolutos, nunca houve tanto público para a arte. Um público com contornos vagos e indefinidos, formado por todo tipo de gente. Penso que fazer crítica para esse público é um desafio interessante e uma tarefa cultural de peso.

7. Nos anos 70, no Brasil e nos Estados Unidos, vemos artistas como Cildo Meirelles, Waltercio Caldas, Robert Smithson e Richard Serra atuando também como críticos dos próprios trabalhos. O que você pensa desse artista que escreve? Acha que ele modifica o papel do crítico de alguma forma?

VB - Como já disse antes, os papéis culturais no sistema artístico contemporâneo são lábeis e intercambiáveis. Muitos artistas começaram a escrever por desacreditar na crítica que era feita (no caso dos EUA, onde a crítica formalista tinha força), ou para suprir a sua falta (no caso brasileiro). Eram formas de atuação crítica e institucional. Isso aponta para um novo papel cultural do crítico: a ação critica torna-se imediatamente cultural. Não é mais possível a crença ingênua de que o crítico estaria fora do sistema cultural, falando a partir de um ponto de vista neutro em termos institucionais.

8. Qual o papel da universidade na construção do discurso crítico atual?

VB - Como já falei, acho que a crítica feita a partir da universidade é um campo novo e estimulante. Hoje há vários artistas, curadores e críticos que trabalham em universidades, dando aulas, fazendo pesquisa e orientando estudantes. São esses estudantes que poderão vir, a meu ver, a consolidar alguns valores culturais, a desafiar outros, a partir de critérios atuais. Afinal, só teremos uma verdadeira história da arte brasileira se esses fenômenos artísticos continuarem relevantes para o público de hoje, colocando novos problemas, permitindo interrogações relevantes para a nossa cultura.