terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Caos na Esfera Pública, Habermas

Publicado em 2006, o texto de Habermas continua uma referência para pensarmos as transformações na esfera pública tradicional; e o papel ambivalente da internet em tal processo.


O Caos na Esfera Pública, Habermas



Quando o diretor do Instituto Karl Renner me comunicou a agradável notícia de que o júri pretendia conferir-me no corrente ano o Prêmio Bruno Kreisky [por avanços na área de direitos humanos; Kreisky (1911-90) foi ministro das Relações Exteriores da Áustria], não me senti apenas motivado a refletir sobre o aspecto estimulante da situação feliz de encontrar tanto reconhecimento imerecido, após décadas de conflitos e de uma imagem tendencialmente controvertida.

Após um estudo mais convencional de filosofia, ingressei em 1956 no meio pouco familiar do Instituto Frankfurtiano de Pesquisas Sociais, onde tive de me familiarizar durante os preparativos de uma pesquisa empírica também com a bibliografia (então ainda exclusivamente jurídica) sobre o Estado de Direito e a democracia.

Por um lado, os debates entre os grandes representantes da teoria do direito do Estado da República de Weimar me pareceram estimulantes, mas não consegui estabelecer uma relação mais apropriada entre os conceitos normativos da ciência jurídica e a teoria da sociedade — sob cujo influxo tentava compreender a realidade política da atualidade de então.



Estado de Direito

Foi a leitura de um livro que me abriu os olhos para o nexo entre economia política e direito. Publicado em 1929 sob o título áspero Os institutos jurídicos do direito privado e a sua função social, remontava a estudos realizados pelo jovem Karl Renner na virada do século, quando seu autor trabalhava como bibliotecário do Parlamento austríaco de então.

Foi assim que entrei em contato com os escritos dos marxistas austríacos, nos quais encontrei três idéias de cuja ausência me ressentia enquanto assistente de Theodor W. Adorno [1903-69] em Frankfurt: em primeiro lugar, a vinculação natural entre teoria e práxis política.

Em segundo lugar, a abertura nada tímida da teoria social marxista diante das descobertas da ciência acadêmica (uma atitude da qual Horkheimer e Adorno se tinham distanciado novamente desde a Dialética do esclarecimento).

E, em terceiro lugar — e sobretudo —, a identificação sem reservas com as conquistas do Estado democrático de Direito sem o abandono de objetivos radicalmente reformistas, voltados para horizontes muito além do status quo.

No meu caminho do marxismo de matriz hegeliana na direção de um pragmatismo kantiano, o livro de um outro austromarxista me deu um estímulo similarmente rico em conseqüências no final dos anos 60. Refiro-me à obra tardia de Max Adler [1873-1937], publicada em 1936 sob o título O enigma da sociedade.

Ao introduzir um "a priori social", Adler não evoca apenas a constituição social da nossa consciência do ego e do nosso conhecimento do mundo; inversamente, a construção dos nexos da vida social também deve se assentar em atos do conhecimento.

A própria sociedade se baseia, então, na facticidade de pretensões de validade, que reivindicamos nas nossas exteriorizações comunicativas. Assim, Adler fundamenta, muito similarmente ao Husserl [1859-1938] tardio, uma referência à verdade de enunciados e correção de normas, imanente à sociedade.

Apesar de toda a sua insistência na cientificidade, Otto Bauer [1882-1938] e Rudolf Hilferding [1877-1941], Karl Renner e Max Adler se consideravam intelectuais de partido, que se submetiam à coação disciplinadora da tática e da organização, quando o momento assim o exigia. Mas, como democratas, faziam uma idéia inteiramente distinta do papel do partido do que o Lukács leninista em História e consciência de classe.

Seja como for, a figura do intelectual de partido pertence ao meio hoje já histórico dos partidos que perfilhavam uma visão de mundo esquerdista. Após 1945, esse tipo não pôde mais subsistir no Ocidente.



Os sem-partido

Diante desse fundo, o tipo do intelectual contemporâneo, sobre o qual pretendo falar, adquire contornos muito nítidos: os intelectuais que entraram em cena depois de 1945 — tais como Sartre, Adorno e Marcuse, Max Frisch e Heinrich Böll — tendem a se assemelhar aos modelos mais antigos dos escritores e professores universitários que tomam partido, mas não estão vinculados a nenhum partido.

Sem serem perguntados, isto é, sem mandato nem votação, eles se deixam provocar pela ocasião a fazer um uso público do seu saber profissional além dos limites da sua profissão. Sem a pretensão a um estatuto elitista, não podem invocar outra legitimação senão o papel do cidadão democrata.

Na Alemanha, as raízes dessa autocompreensão igualitária remontam à primeira geração depois de Goethe [1749-1832] e Hegel [1770-1831].

Os irrequietos literatos e livres-docentes do círculo da "Jovem Alemanha" e dos hegelianos de esquerda definiram o perfil do intelectual pairando livremente acima da sociedade — na qual intervinha espontaneamente, muitas vezes choroso, polemicamente excitado e imprevisível — assim como definiram os preconceitos arraigados contra ele.

Não por acaso, a geração de Ludwig Feuerbach, Heinrich Heine e Ludwig Boerne, Bruno Bauer, Max Stirner e Julius Froebel, Marx, Engels e Kierkegaard entrou em cena antes de 1848, quando o parlamentarismo e a imprensa de massa se formavam sob as asas protetoras do liberalismo incipiente.



Peixes fora d'água

É já nesse período de incubação, quando o vírus da Revolução Francesa se alastrou por toda a Europa, que se manifesta a constelação na qual o tipo do intelectual moderno encontrará o seu lugar. Ao influírem com argumentos retoricamente afiados na formação da opinião, os intelectuais dependem de uma esfera pública capaz de lhes servir de caixa de ressonância, alerta e informada.

Necessitam de um público de orientação mais ou menos liberal e precisam confiar num Estado de Direito minimamente encaminhado pelo simples fato de apelarem a valores universalistas em meio ao litígio sobre verdades sufocadas ou direitos negados.

Pertencem a um mundo no qual a política não se dissolve na atividade do Estado; seu mundo é uma cultura política da contradição, na qual as liberdades comunicativas dos cidadãos podem ser desencadeadas e mobilizadas.

É simples projetar o tipo ideal de intelectual que rastreia temas importantes, levanta teses fecundas e amplia o espectro dos argumentos pertinentes para melhorar o nível deplorável dos debates públicos.

Por outro lado, eu não deveria sonegar aqui a ocupação mais querida dos intelectuais: eles adoram sintonizar-se com as queixas rituais sobre o declínio "do" intelectual. Confesso não estar inteiramente livre dessa tendência.

Será que não sentimos falta das grandes entradas em cena e manifestos do Grupo 47, das intervenções de Alexander Mitscherlich ou Helmuth Gollwitzer, dos posicionamentos políticos de Michel Foucault, Jacques Derrida e Pierre Bourdieu, os textos de intervenção de Erich Fried ou Günter Grass? Será que a culpa realmente cabe a Grass, se as suas vozes hoje praticamente só encontram ouvidos moucos? Ou será que na nossa sociedade midiática não ocorre uma nova mudança estrutural da esfera pública, que faz mal à figura clássica do intelectual?

Por um lado, a reorientação da comunicação, da imprensa e do jornalismo escrito para a televisão e a internet conduziu a uma ampliação insuspeitada da esfera pública midiática e a uma condensação ímpar das redes de comunicação.

A esfera pública, na qual os intelectuais se moviam como os peixes na água, tornou-se mais includente, o intercâmbio é mais intenso do que em qualquer época anterior.



Maldição

Por outro lado, os intelectuais parecem morrer sufocados diante do transbordamento desse elemento vivificador, como se ele lhes fosse administrado em overdose. A bênção parece transformar-se em maldição. As razões para isso me parecem ser uma informalização da esfera pública e uma indiferenciação dos correspondentes papéis.

A utilização da internet simultaneamente ampliou e fragmentou os nexos de comunicação. Por isso a internet produz por um lado um efeito subversivo em regimes que dispensam um tratamento autoritário à esfera pública. Por outro lado, a interligação em redes horizontais e informalizadas de comunicação enfraquece ao mesmo tempo as conquistas das esferas públicas tradicionais, pois estas enfeixam no âmbito de comunidades políticas a atenção de um público anônimo e disperso para informações selecionadas, de modo que os cidadãos podem ao mesmo tempo se ocupar dos mesmos temas e contributos criticamente filtrados.

O preço do aumento positivo do igualitarismo, com o qual a internet nos brinda, é a descentralização dos acessos a contribuições não-redigidas. Nesse meio, as contribuições de intelectuais perdem a força necessária para formar um foco.
Não obstante, seria apressado afirmar que a revolução eletrônica destrói o palco para as aparições elitistas de intelectuais vaidosos, pois a televisão, essencialmente atuante no âmbito das esferas públicas estabelecidas nos Estados nacionais, apenas fez aumentar o espaço do palco da imprensa, das revistas e da literatura.

Ao mesmo tempo a televisão transformou o palco. Deve mostrar em imagens o que quer dizer, e acelerou o iconic turn, a virada da palavra para a imagem. Essa desvalorização relativa desloca também os pesos entre duas funções distintas da esfera pública.

Como a televisão é um meio que torna algo visível, confere celebridade no sentido de notoriedade aos que aparecem em público. Os atores sempre representam a si mesmos diante da câmera, independentemente da sua contribuição ao conteúdo do programa. Por isso o espectador se lembra em encontros fortuitos de ter visto o rosto do outro em algum momento passado.

Mesmo se o conteúdo remete a um evento discursivo, a televisão convida os participantes à representação de si mesmos, como podemos observar em muitos talk shows. O momento da auto-representação dos atores transforma inevitavelmente o público judicante — que, diante da tela, participa do debate sobre temas de interesse geral — também em um público assistente.



Celebridade e reputação

Não se diga que esse traço não cai como uma luva na vaidade patológica dos intelectuais; alguns se deixaram corromper pelo convite do meio à auto-representação, prejudicando assim a sua fama, pois o bom nome de um intelectual, se é que ele existe, não se baseia em primeiro lugar na celebridade ou notoriedade, mas em uma reputação, que o intelectual deve ter adquirido entre seus pares de profissão, seja como escritor ou como físico (de qualquer modo, em alguma especialidade), antes de poder fazer um uso público desse saber ou dessa reputação.

Ao intervir num debate com argumentos, ele precisa se dirigir a um público não de assistentes ou espectadores, mas de oradores e destinatários potenciais, capazes de discutir uns com os outros. Para expressar isso à maneira de um "idealtipo" — segundo o sentido de Max Weber —, importa aqui a troca de razões, e não o enfeixamento encenado de olhares.

Talvez isso explique porque as rodas de políticos, especialistas e jornalistas, que se formam em torno dessas moderadoras feéricas, não deixam nenhuma lacuna que deveria ser preenchida por um intelectual.

Não sentimos sua falta, pois todos os outros já há muito tempo cumprem melhor o seu papel. A mistura de discurso e auto-representação conduz à indiferenciação e assimilação de papéis, que o intelectual, hoje démodé, outrora se via obrigado a manter separados.

O intelectual não deveria usar a influência ganha com palavras como meio de conquista de poder. Não deveria, portanto, confundir "influência" com "poder". Mas ainda hoje, nos talk shows, o que poderia distingui-lo dos políticos, que há muito tempo se servem do palco da televisão para uma concorrência intelectual em busca da ocupação de temas e conceitos influentes?



Faro vanguardista

O intelectual também não é requisitado como especialista.

Sem perder a consciência da sua falibilidade, ele deveria ter a coragem para posicionamentos normativos bem como a fantasia necessária para a formulação de perspectivas imaginativas. Mas o que poderia distingui-lo hoje ainda de especialistas, que há muito tempo aprenderam na discussão com especialistas de opinião contrária o que devem fazer para oferecer uma interpretação de seus dados que defina eficazmente a opinião dos ouvintes?

Por fim, o intelectual deveria se distinguir do jornalista inteligente menos pela forma da apresentação e mais pelo privilégio de ter de se ocupar apenas paraprofissionalmente dos assuntos da coletividade.

Ele só deveria intervir, mas intervir em tempo hábil — à semelhança de um sistema de alarme antecipado —, quando a vida cotidiana sai dos trilhos.

Com isso mencionamos a única capacidade que deveria distinguir o intelectual também no presente, a saber, o faro vanguardista para relevâncias. Ele deve poder interessar-se por desenvolvimentos críticos num momento no qual os outros ainda se detêm no business as usual.

Isso exige algumas virtudes inteiramente não-heróicas: uma sensibilidade desconfiada diante de lesões da infra-estrutura normativa da sociedade; a antecipação cautelosa de perigos que ameaçam a dotação mental da forma da vida política comum; o senso do que falta e "poderia ser diferente"; um pouco de imaginação para a projeção de alternativas; e um pouco de coragem para a polarização, a manifestação inconveniente, o panfleto.

Dizer isso é uma coisa, fazê-lo outra, e isso sempre foi assim. O intelectual deve poder se inquietar e deveria possuir a faculdade de juízo necessária para não reagir extremadamente.

Seus críticos — de Max Weber e Joseph Schumpeter a Arnold Gehlen e Helmut Schelsky — sempre lhe lançaram a acusação da "excitação estéril" e do "alarmismo". Ele não deve se deixar intimidar por essa acusação. Mais influente como intelectual, Sartre errou nos seus juízos políticos com maior freqüência do que Raymond Aron.

Por outro lado, o faro para relevâncias também pode descarrilar terrivelmente.

O que mais me estimula hoje — o futuro da Europa — é visto por outros como uma questão abstrata e entediante. Por que deveríamos nos interessar por um tema tão pálido?

A minha resposta é simples: se não conseguirmos fazer da pergunta polarizadora pela finalidade, pelo "para quê" da unificação européia — o tema de um referendo em todos os Estados-membros da União Européia até as próximas eleições européias em 2009 —, o futuro da União Européia será decidido no sentido da ortodoxia neoliberal.

Se evitarmos esse tema delicado em nome de uma paz enganosa e continuarmos com essas medidas de expedientes, tomadas no costumeiro caminho das soluções de meio-termo, daremos livre curso à dinâmica dos mercados desenfreados e assistiremos ao desmonte do próprio poder de configuração política da União Européia, em benefício de uma difusamente ampliada zona européia de livre comércio.

No processo de unificação da Europa, estamos pela primeira vez diante do perigo de uma recaída aquém do patamar atingido da integração. O que me inquieta é a rigidez da paralisia após o fracasso dos dois referendos sobre a Constituição, na França e Holanda. Nessa situação, a ausência de decisão é uma decisão de grande alcance.



O impasse europeu

Três problemas que nos afligem diretamente enovelam-se no problema único da deficiente capacidade de ação da União Européia:

1. Alteradas no curso da globalização, as condições da economia mundial proíbem hoje ao Estado nacional servir-se dos recursos oriundos da arrecadação de tributos, sem as quais ele não pode mais atender, na escala necessária, as costumeiras exigências da política social e, mais genericamente, a demanda de bens coletivos e serviços públicos.

Outros desafios, como o desenvolvimento demográfico e uma imigração maior, agravam essa situação, que só admite uma saída pela via ofensiva: a recuperação da força de configuração política no plano supranacional. Sem alíquotas convergentes de tributos, sem uma harmonização das políticas econômicas e sociais no médio prazo, deixaremos o destino do modelo social europeu nas mãos de terceiros.

2. O retorno a uma política brutalmente hegemônica de busca do poder, o choque do Ocidente com o mundo islâmico, a decomposição de estruturas estatais em outras partes do planeta, as conseqüências de longo prazo da história colonial e as conseqüências políticas diretas de uma descolonização fracassada: tudo isso sinaliza uma situação mundial extremamente perigosa.

Somente uma União Européia que se habilita à ação no plano da política externa e assume um papel relevante em termos de política mundial, ao lado dos EUA, da China, da Índia e do Japão, poderia fomentar nas instituições existentes da economia mundial uma alternativa ao predominante Consenso de Washington e fazer avançar, sobretudo no interior da ONU, as reformas há muito tempo vencidas, entrementes bloqueadas pelos EUA, mas dependentes do seu apoio.

3. As causas da cisão do Ocidente, visível desde a Guerra do Iraque, também residem em um conflito de culturas que divide a própria nação norte-americana em dois campos de dimensões praticamente iguais. Na seqüência desse deslocamento mental, os critérios de aferição normativa da política governamental, até agora vigentes, se desconcertam por igual. Isso não pode deixar indiferentes os aliados mais estreitos dos EUA.

Justamente nas situações críticas em ações conjuntas, devemos nos libertar da dependência do parceiro mais forte.

Até agora os europeus se subordinaram às instruções e regras do alto comando norte-americano nas missões da Otan [aliança militar ocidental]. Agora devemos nos capacitar para manter, mesmo em ações conjuntas, a fidelidade às nossas próprias idéias sobre o direito internacional público, a proibição da tortura e o direito penal em conflitos bélicos.



Democracia

Por isso, penso que a Europa deve se mobilizar para uma reforma que não confira à União Européia apenas procedimentos decisórios efetivos, mas a dote de um ministro de Relações Exteriores, um presidente eleito pelo voto direto e uma base financeira própria. Tais exigências poderiam ser o objeto de um referendo, que poderia ser combinado com as próximas eleições para o Parlamento Europeu.

O anteprojeto seria considerado aceito caso obtivesse a "maioria dupla" dos Estados-membros e dos votos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, o referendo vincularia apenas os Estados-membros em que a maioria dos cidadãos teria decidido em favor da reforma.

Com isso a Europa daria adeus ao modelo do comboio de navios no qual o mais lento define a velocidade. Mesmo em uma Europa de centro e periferia, os Estados-membros que por enquanto preferem ficar à margem naturalmente continuariam com a opção de associar-se ao centro quando bem quisessem.

Os políticos com o faro orientado para o futuro podem levar os intelectuais a reboque.

Fonte: Folha de S. Paulo, 13 ago. 2006



segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Entrevista com Anne Cauquelin

Nessa entrevista, a filósofa Anne Cauquelin discute o conceito de arte contemporânea, procurando refletir sobre o impacto da internet na arte. Ou seja, pensa como as mudanças na esfera pública estão transformando o fazer artístico....



Em 1992, em seu livro Arte contemporânea: uma introdução, a senhora falava que a multiplicidade de obras e de títulos acerca da arte geravam certa confusão sobre o que seria exatamente arte contemporânea. Como a senhora identificou esta situação? E de lá para cá, que mudanças ocorreram neste cenário?
Eu creio que a situação se congelou. Quando lancei este livro, e talvez nos dois anos que se seguiram, o que eu havia escrito se tornou realidade no mundo todo, mas ficou, ao mesmo tempo, paralisado. O que tínhamos era um logo “arte contemporânea”, mais do que uma arte em movimento. Era uma espécie de pacote com características daquilo que as pessoas faziam e aquilo com o quê se preocupavam – o que chamei, em outro livro, de palavras de ordem. Palavras de ordem que são quase injunções: é preciso praticar o vazio ou expor o vazio, é preciso fazer isto, é preciso fazer aquilo, e, implicitamente, os artistas o faziam. Então, tínhamos um pacote de obras, um pacote de atividades, que se assemelhavam entre si e às palavras de ordem, e que então se congelaram assim. E, neste momento, começamos a chamar isto de arte contemporânea, e continuamos a chamar isto de arte contemporânea mesmo que as coisas não tenham se mexido. O que eu percebo, agora, é que temos grandes museus de arte contemporânea, galerias de arte contemporânea, revistas de arte contemporânea... Só que isto é uma estrutura, uma estrutura em movimento, então não se pode falar de um museu de arte contemporânea como se fosse um lugar onde se colocam coisas contemporâneas dentro.

Além desta ideia de que os museus não podem ser tratados apenas como "caixas onde se coloca coisas contemporâneas", a senhora também afirma que os museus são, eles próprios, "atuadores" que compartilham da função de autor.
No fundo, aquele que expõe a obra é também o autor da obra: o galerista, o museu – também o museu é autor, é um ser. É claro que isso muda completamente o modo de se ver o museu, ou seja, de vê-lo como um ser vivo, um organismo.

Isto significa dizer que a arte, mais do que um resultado, passou a ser uma atitude?
Sim, é justamente isso que estamos falando – como se fosse possível criar um museu para atitudes... E tem aí a questão do virtual, que é mais um modo de ser, um modo de viver, do que a realização de obras propriamente ditas. E esse modo de vida está o tempo todo em deslocamento, ele se mexe o tempo todo. Ser contemporâneo, então, é seguir esse movimento, é não permanecer em uma atitude fixa.

A senhora já afirmou outras vezes que considera que a internet, atualmente, tem papel fundamental sobre a esfera da arte, e que a comunicação é o grande "organizador desorganizado" da arte contemporânea. Por que? Que fatores contribuíram para esta mudança e que leis regem, hoje, este sistema?
Costuma-se dizer que os artistas de maior valor são os mais citados na rede. Esta é a resposta da arte ao novo. Eu tento prevenir que a comunicação da obra na rede não é uma explicação da influência que ela tem. Porque o que temos hoje é um pensamento flutuante de obras que chegam pela web. Os artistas não são melhores assim, tampouco as obras. A quantidade de coisas que nos chegam assim é sobretudo uma expansão de si, uma subjetividade que é colocada na obra mas, bom, ela não está lá – está em outro lugar. Eles podem até crer que isso agrega alguma coisa, mas acho que não agrega nada.

Poderíamos então dizer que, com a internet, a obra de arte caminha para o desaparecimento?
Creio que sim. São duas coisas: em primeiro lugar, é muito fácil de perder alguma coisa na web. As coisas desaparecem – elas estão lá, em algum lugar, mas não as encontramos sempre que queremos. Em segundo, uma outra coisa, mais interessante: o fato de que fitas de vídeo – que são objetos reais – não podem ser conservadas por muito tempo. Há um desaparecimento progressivo das coisas que são registradas pela tecnologia – o audiovisual, os CDs, tudo isso –, e que, no entanto, são ferramentas de trabalho.

Importante referência no pensamento teórico sobre a arte contemporânea –, Anne Cauquelin é filósofa, escritora e artista. Doutora e professora emérita da Universidade de Picardie, na França, publicou, entre outros, Teorias da arte (2005), Arte Contemporânea: uma introdução (2005), A invenção da paisagem (2007) e Frequentar os incorporais (2008), além dos romances Potamor e
Les prisons de César. É, ainda, redatora-chefe da revista Revueesthétique.

Entrevista retirada do site Fundação Iberê Camargo

domingo, 14 de novembro de 2010

Lufada de vida no MAM Rio

O Museu de Arte Moderna do Rio vive momento de revitalização sob a direção de Luiz Camillo Osório. É a prova de que política cultural se faz com inteligência e idéias, com projeto enfim.... Ver matéria na Folha de S. Paulo, Museu de Novidades:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il1411201009.htm

sábado, 13 de novembro de 2010

A Guerra dos Mundos e Cildo Meireles
Martha Telles


A adaptação para o rádio do romance-ficção Guerra dos Mundos, de H.G.Wells, realizada por Orson Welles é uma referência importante no pensamento artístico de Cildo Meireles. Em suas palavras: “se eu fosse estabelecer uma genealogia, não necessariamente precisa, sobretudo afetiva, eu seguramente teria que falar no Marcel Duchamp, teria que falar no Manzoni, e teria que falar no Orson Welles, especificamente da Guerra dos Mundos”. Em 1938, Welles adapta a história da invasão de extraterrestres na terra. Simulando os modelos dos noticiários radiofônicos, a ficção misturou-se com o real, sem perder, entretanto, os seus limites do artifício, do artífice, de arte enfim. A transmissão causou uma catarse coletiva, resultando mesmo no suicídio de alguns norte-americanos. Guerra dos Mundos esgarça, ironiza os limites do próprio conceito de objeto de arte, aspectos estes caros para Cildo:
“Acho que aí objeto de arte chegou a uma situação ímpar, onde toda e qualquer fronteira entre ficção e realidade foi detonada, implodida. O bonito é que isso sempre foi falado do ponto de vista do sujeito da arte, do artista. Ele( Welles) podia, muito facilmente, ter realmente partido para uma abordagem no sentido de iludir com o real que havia naquela ficção. E ele soube manter um distanciamento perfeito. Mesmo estremecendo essa fronteira, ainda assim, havia plena consciência de que aquilo era um objeto de arte. Acho que a beleza desse trabalho reside muito em não abdicar dessa história”.
Cildo Meireles reconhece em Orson Welles um problema com o qual a arte terá que se haver na contemporaneidade: o que é arte e o que não é. Como definir objeto de arte nesse novo regime informacional da sociedade de massa? A pergunta sobre o estatuto do objeto de arte perpassa toda obra do artista. Tal questão o levará a redefinir o conceito de objeto de arte, de artista, o papel do espectador e sua relação com o sistema de arte.

Link para ouvir a transmissão de Guerra dos Mundos. http://leoteles.com/?p=93
Citações retiradas de entrevista dada a mim em 2002.

sábado, 30 de outubro de 2010

Nuno Ramos, Oiticica e o Brasil Diarréia

Martha Telles


Postei a matéria com Nuno Ramos à qual me referi em quase todas as últimas aulas. Nela, o artista explica um pouco do seu trabalho na 29ª Bienal de São Paulo, Arte e Política. A obra Bandeira Branca instalada no vão central do prédio inscreve-se na tradição (se já é possível falar em tradição de arte Brasil) do pensamento crítico de arte em nosso país. Nuno se percebe herdeiro e continuador dessa tradição, em meio a um momento de pouca reflexão nacional. “Acho que a gente está vivendo um tipo de desenvolvimentismo. Todo mundo eufórico, mas todo mundo muito cego. Quis romper isso com uma espécie de mau agouro que os urubus vão dar para o vão central, que é uma das coisas mais bonitas que o Niemeyer já fez, diz o artista.



Goeldi e Hélio Oiticica são referências explícitas em Bandeira Branca, que remetem a facetas menos luminosas e marginais de nossa cultura. Em Oiticica, particularmente nos Penetráveis, formula-se uma síntese de seu pensamento artístico e político. Como analisa Carlos Zílio, no texto Da Antropofagia à Tropicália, esse penetrável é a vivência da visão da cultura brasileira como “diarréica”. Em Brasil Diarreia, Oiticica identifica como nossas características impensáveis para um Brasil da década de 1960, em que predominava, no âmbito da cultura, a concepção do nacional popular. “A formação brasileira, reconhece-se, é de uma falta de caráter incrível: diarréica; quem quiser construir (ninguém mais do que eu ama o Brasil!) tem que ver isso e dissecar as tripas dessa diarreia, mergulhar na merda”. Seus trabalhos fazem uma incursão sobre os mitos populares. A estratégia é desarticular a estrutura de tais imagens a fim de provocar uma tensão interna que produza um questionamento dos participantes.


Em Tropicália (1967), o espectador é convidado a “penetrar” em corredores apertados e labirínticos, em tudo semelhantes a barracos de favela. Nesse ambiente sem saída, que não leva a lugar algum, escuta sons de fora e de dentro, que mais tarde  se revelam como o de uma televisão. Caminha-se por estruturas fixas geométricas que remetem às obras de Mondrian. São imagens táteis expandidas com a vivência do andar na areia, nas pedrinhas e nos tapetes espalhados pelo chão. “Eu queria nesse penetrável fazer um exercício de imagens em todas as suas formas”, declarou Oiticica. Os elementos imagéticos presentes no trabalho, como bananeiras e araras, a construção pobre típica das favelas, representavam o ambiente tropical e o lado “negativo” da sociedade brasileira, marginalizada nos morros. Entretanto, tais imagens idealizadas eram desconstruídas no processo de vivência, no apelo a todos os sentidos proposto no trabalho. Nas palavras de Hélio, “Tropicália era para definitivamente colocar de maneira óbvia o problema da imagem... Todas as coisas de imagem óbvia de tropicalidade, que tinham arara, plantas, areia, não eram para ser tomadas como uma escola [...] Foi exatamente o oposto que foi feito, todo mundo passou a pintar palmeiras e fazer cenários de palmeiras e botar araras em tudo”.

Tropicália sugere uma reflexão sobre o surgimento da cultura de massa no Brasil, o que colocava a necessidade de formular nova relação da arte local com a trama do tecido cultural brasileiro. Contra a diarreia geral, o artista propõe a noção de experimental: “que não só assume a ideia de modernidade e vanguarda, mas também de transformação no campo dos conceitos-valores vigentes; é algo que propõe transformações no comportamento contexto, que deglute e dissolve a coni-convivência. No final, Hélio sintetiza sua fórmula: "No Brasil, portanto, uma posição crítica universal permanente e experimental é elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarreia."


Nuno Ramos reclama para seu trabalho o diálogo com a noção de experimental, tal qual formulada por Helio Oiticica e presente nas obras de Goeldi, Lygia Clark, Cildo Meireles, Tunga, Antonio Dias, para ficar com alguns. Bandeira Branca propõe uma reflexão crítica sobre as imagens nacionais consagradas como nosso modernismo, em particular com o musical e o arquitetônico. A tensão entre a face agourenta de nossa cultura e as belas curvas de Oscar Niemayer é elemento-chave do trabalho. De genialidade inquestionável, a arquitetura moderna de Niemeyer apresenta uma característica singularíssima, que muito fala de nós. Suas formas etéreas desvinculam a expressão construtiva para se entregar a gestualidade do desenho, evitando assim explicitar tensões concretas de sua espacialização. (ver dissertação Ana Paula Gonçalves Pontes, referência abaixo). Como dirá Argan, é exatamente a propriedade projetiva que confere um caráter autocrítico à forma. Tal propriedade seria responsável pela capacidade de sublimar na arte uma ação no mundo, ou seja, de recriar uma realidade.

Os urubus enlutados de Nuno desconstroem a imagem de um Brasil que vive a euforia da era do consumo no país de hoje. Nas palavras de Nuno, “é um momento de grande aceleração sem direção, um segundo desenvolvimentismo. Também há uma cegueira e falta de capacidade de projetar. É uma espécie de agora dilatado que o Brasil sempre vive. Somos o 'nunca antes neste país' eterno”. Evocam o lado mais sombrio, mais reflexivo, tencionando a imagem lúdica, otimista da obra de Niemayer. Uma desconstrução de uma imagem nacional.
Bandeira Branca é ainda uma crítica ao atual regime de hiperinstitucionalização da arte. É um antipenetrável, o espectador fica do lado de fora. A experiência apenas é possível pela visão através das grades, algo semelhante ao atual regime de fruição da arte que cada vez mais se refere à sua história e linguagem. Mas disso falaremos mais adiante.
Referencias bibliográfias e Links
PONTES, Ana Paula Gonçalves A Monumentalidade Flutuante de Oscar Niemeyer. In Diálogos Silenciosos, arquitteura moderna brasileira e tradição clássica. Dissertação de Mestrado. PUC-RJ. 2004( tese abertas PUC)
ZILIO, Carlos. Da Antropofagia à Tropicália. Revista Arte & Ensaio. EBA/RJ N 18, 2009.








sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A Crítica de Arte


Editorial
Por: Camila R., Camila S.,
Gabriel F. e Tatiana G.


Coube-nos neste espaço abordarmos uma esfera do universo artístico que – ainda – é passivo de muitas mudanças e contradições como veremos: A crítica.
Em um breve passeio pela história para melhor nos situarmos, adentramos o século XVIII e nos deparamos com a iluminada figura de Denis Diderot e um pouco mais a frente Charles Baudelaire.
Esse primeiro crescia no meio literário e filosófico da época e era um grande fruidor das artes. Diderot pode ser mais lembrado pela massiva participação na elaboração da Enciclopédie, no entanto abordaremos aqui a sua participação naquela esfera que nos propomos a discutir. “Diderot começa a delinear uma atividade que seria fundamental no século seguinte: a crítica de arte. (...) Em Diderot encontramos o texto sobre a oba com julgamentos pessoais e inclinações de gosto que são patentes. É uma crítica nascente, onde o autor expõe sua opinião estabelecendo o juízo de gosto
[1]. Um século mais tarde ocorre uma reformulação no que havia como texto crítico de arte. Falamos agora da interferência de nossa segunda figura, Baudelaire. O texto, com Baudelaire, ganha uma nova concepção, percebe-se a possibilidade de discussão, pois as obras são vistas como uma experiência.
Enquanto com Diderot existe uma maior descrição da obra, um texto mais opinativo, em Baudelaire vemos um interesse maior em questões como a cor, tonalidade, as linhas. “Ele [Baudelaire] já propõe indagações no campo das conceituações que, mesmo partindo da obra, sinalizaram uma diferente postura crítica, prenunciadora da modernidade.”
[2]
Ambos, Diderot e Baudelaire são um pouco mais lembrados pelo fato de terem dado o primeiro passo para o início da crítica e o desenvolvimento da mesma, respectivamente. Há, porém uma série de outros personagens que podem ser citados, como Stendhal, Théophile, Émile Zola e por aí segue a lista.
Traremos mais adiante um bate-papo com duas figuras da cena crítica atual brasileira: Rodrigo Naves e Vera Beatriz. Siqueira. Com eles discutiremos assuntos diversos no que diz respeito à crítica.


[1] Da Luz, A.A. Uma Breve História dos Salões de Arte – da Europa ao Brasil. Rio de Janeiro: Caligrama, 2005.
[2] Idem ao 1.




1. A crítica de arte desempenha um papel de extrema importância dentro do seu sistema, ainda que esteja em constante mudança, tal qual a arte em si. Mas nem sempre essa crítica se deu da mesma forma como é entendida atualmente. Quando surge o conceito de crítica como o conhecemos hoje? E como se relacionava inicialmente com o sistema de arte?

Rodrigo Naves - Não sou um especialista nisso. Até onde eu sei a crítica de arte, mais ou menos, próxima ao que conhecemos hoje surge com Diderot no final do século XVIII. E depois ganha uma feição ainda mais próxima da que fazemos no século XIX com Baudelaire (importante poeta francês). E a questão básica é o surgimento de preposições (...) com uma espécie de relação de alguém que julga, que analisa, que avalia um determinado trabalho, repousa, mais ou menos, sobre a necessidade de que as pessoas tenham acesso à obra sobre a qual se escreve. Portanto, é necessário que haja órgãos, mais ou menos, públicos como o jornal, por exemplo. E, por outro lado que as obras estejam passíveis de serem vistas, porque se eu escrever sobre uma coisa que você não pode ver evidentemente isso não é crítica, porque os meus juízos não podem ser cotejados com os seus. Então, o que ocorre é que há, sobretudo a partir do século XVIII na França, uma intensificação das exposições anuais (...) que, portanto, é a condição de que as obras se tornem visíveis e visitáveis e, por outro lado, um investe peso na imprensa ainda maior. É em função da convergência desses dois aspectos centrais que passa a ter essa relação mais corpo-a-corpo com o trabalho de arte, (...) uma relação mais individual com obras individuais em torno das quais se formulam certos juízos, que fazem análises que não são apenas temáticas, que passam a existir análises, também, mais formais.

Vera Beatriz - Podemos pensar em vários começos para a crítica de arte. Por exemplo, podemos pensar em Baudelaire, poeta e crítico que, na minha opinião, formula o conceito moderno de crítica, especialmente em um texto sobre uma das exposições internacionais em Paris na qual, diante de obras chinesas formula seu espanto e afirma “preferi me refugiar na mais absoluta ingenuidade”. Essa ingenuidade construída, de segunda ordem, é essencial para o crítico de arte a partir da modernidade, que se vê diante de uma obra desafiadora dos padrões de gosto. Seus textos, como os de Balzac e Zola, na mesma época, falam desse contato direto, de um embate mesmo entre o crítico e a obra. Podemos retroceder um pouco e pensar em Diderot, na virada do século XVIII para o XIX, com sua crítica eivada de sentimento e subjetividade, ainda que delimitada pelos critérios mais ou menos comuns do gosto acadêmico. Ou nos filósofos românticos desse mesmo período, como Novalis, Schelling ou Schlegel, que encontram na arte uma possibilidade de confronto crítico com o mundo. Poderíamos retroceder ainda mais, chegando a Vasari, no Renascimento, que escreve as Vidas dos artistas da época. Ainda que mais comumente relacionado à História da Arte, a idéia de que a história que ele propõe se baseia num critério de juízo, numa hierarquia dos trabalhos artísticos (o que é bem, o que é melhor, o que é pior), demonstra a íntima relação de origem entre história e crítica de arte. Ou seja: há muitos possíveis começos. Talvez a questão mais relevante seja o seu fim (ou fins possíveis). Pois o que vemos hoje é uma crítica cada vez mais fraca, geralmente identificada com uma mera descrição do trabalho ou com a sua justificativa.

2. Qual você acha que era a importância da crítica no processo de significação da obra. Você acha que ela ainda tem esse papel?

RN - Hoje em dia, eu acho que, crescentemente, a importância que o crítico atinge, sobretudo fora do Brasil onde ela nunca foi muito significativa, esse peso vem se transferindo para a figura dos curadores e das instituições, ou seja, houve um crescimento enorme de instituições culturais, museus, centros culturais, etc. E mais do que propriamente a importância da relação entre as análises dos trabalhos de arte e a inserção das obras de arte, o que tem hoje é a tentativa, sobretudo por parte dos curadores associados a essas novas instituições de reunir os trabalhos em exposições mais temáticas em torno de conceitos que podem ser os mais estapafúrdios como corpo e memória, a dor e a significação, a vida e a morte, etc. E essa espécie de quase adaptação dos trabalhos de arte de certos conceitos anteriores que faz crescer, de certa maneira consagrados por certas instituições e que passaram a ter, pelo menos de um ponto de vista mais amplo, o papel da crítica. Quer dizer, a crítica tal como vinha sendo feita desde os modernos continua a existir, mas parece que com muito menos significação, muito menos peso do que já teve.

VB - A crítica de arte moderna (ou modernista, como alguns preferem, embora particularmente não goste desse termo) se fundamenta na idéia de que o valor da obra é intrínseco a ela. Ou seja: há uma qualidade, muitas vezes indefinível, mas que conserva traços objetivos, da obra e esta lhe confere o valor. Esta qualidade é a sua contemporaneidade, a sua capacidade de responder criticamente ao tempo em que se insere, com relevância cultural e originalidade. No mundo contemporâneo, a crítica passa formular um valor que não se acredita mais que está no objeto – até porque este, muitas vezes, nem se pretende mais um objeto especial, diferenciado – e sim que é algo que se agrega ao objeto, depois de sua realização (e independente dela). Assim, a crítica torna-se, basicamente, um discurso cultural, entre tantas outras formas de discursos culturais. No Brasil, essa situação me parece mais trágica, pois nunca tivemos uma crítica de arte forte contra a qual lutar e se diferenciar. Assim, ficamos num perpétuo vazio. Porém, mantenho-me otimista, acreditando que a velha tarefa de valorizar objetos estéticos é ainda importante, capaz de participar do processo de atribuição de significação cultural à obra.

3. Nos anos 80 surge a figura do curador, muito ligada a um momento de hiper institucionalização da arte. Poderíamos dizer que esse novo agente do sistema, o curador, diferentemente do crítico, constrói temáticas e narrativas para exposições?

RN - Sim. Porque o que o que eles fazem basicamente é isso. Eu não saberia dizer melhor. É criar narrativas. O que faz com que, eu acho pelo menos, surja um problema um problema muito forte que é uma espécie de redução muito grande da singularidade dos trabalhos, eles passam a adquirir uma legibilidade em função desse encaixe em certas narrativas que retira deles qualquer especificidade ou retira, pelo menos, muito de sua especificidade. Não acho que seja uma submissão absoluta nesse discurso, nessa narrativa, mas é, mais ou menos, nessa direção e eu acho isso muito complicado. Mas que digamos, cria-se um discurso dominante que eu acho indiscutível. Basta ver nas Bienais de São Paulo, (...) em espaços públicos e em galerias para ver como isso é verdadeiro.

3.1) Pelo fato deles criarem essas temáticas, eles criam uma função mais informativa, e, portanto, o público atual se interessa mais, porque é um público que busca mais informação, hoje em dia...

RN - Mais informação eu não diria, porque em geral essas narrativas que de alguma maneira são sintetizadas nos títulos não são propriamente informativas. Eu acho que são tentativas de fazer com que o trabalho de arte dialogue com questões contemporâneas, sei lá, vou pegar um exemplo banal: A penúltima Bienal que se chamava VIVER JUNTO, então, do que se tratava em meio a uma série de conflitos a Iugoslávia, a Chechênia, enfim, um mundo de conflitos, a nova configuração da Europa depois da guerra fria, outras regiões, eles se propunham um tema que seria uma espécie de pacifismo. Mas, que não me parece que seja uma questão propriamente capaz de identificar o sentido da produção contemporânea e você se importa que seus trabalhos sejam mais ou menos nesse discurso e faz com que as obras encaixem nesse discurso. E não acho que seja propriamente uma dimensão informativa. De algumas maneiras seria. Seria, um pouco, aproximar a arte de certos problemas mais do dia-a-dia. Agora, não sei se seria propriamente um caráter informativo, seriam denúncias de caráter maior da atualidade das artes, mas me parece que muito em detrimento até do aspecto artístico dos trabalhos, porque se tornam muito boneco de ventríloquo onde passam a dizer coisas através deles e não por eles mesmos.

3.2) Você diria que o curador tomou o lugar do crítico ?

RN - A figura do curador sempre existiu. É uma figura absolutamente oculta, ou seja, você ia ver uma grande retrospectiva do Rembrant, do Matisse, do Picasso ou do Duchamp e no geral nem notava quem era o curador. Quer dizer, o curador era uma pessoa que conhecia profundamente a obra de um grande artista ou de uma vertente como o Surrealismo e de maneira discreta se esforçavam para realizar uma mostra significativa ou de um artista ou de uma vertente artística. Hoje em dia, é rigorosamente ao contrário, você em geral só vê a mão do curador e os trabalhos parecem adquirir uma função estética (do modo que são usados pelo curador). Então, a noção de curadoria é extremamente antiga (...) e adquiriu um caráter novo. E eu não acho que eles tomaram o lugar da crítica. Acho que continua havendo críticos, enfim, muitas vezes críticos são curadores e continuam fazendo seu trabalho de forma digna. Eu acho que passaram a ter mais relevâncias e mais peso, mais determinantes na discussão. As coisas continuam a existir separadamente.

4. Como você poderia definir a diferença entre o crítico e o historiador?

VB – Na realidade, as diferenças são mais disciplinares do que propriamente metodológicas. Ambos, crítico e historiador, trabalham a partir do juízo, desenvolvendo um procedimento basicamente crítico. Além disso, acho que a tradicional divisão entre Crítica/arte contemporânea e história/arte do passado é francamente equivocada. É possível escrever um texto crítico sobre uma obra tradicional ou fazer a História da Arte contemporânea. A História da Arte, porém, como campo disciplinar, precisa lidar com a construção rigorosa de conceitos históricos. Ou seja: o juízo crítico se destina à criação de séries históricas de objetos, ainda que estas reúnam objetos de vários períodos históricos. Já a Crítica de Arte pode lidar com conceitos um tanto mais metafóricos, frequentemente mais relacionados a problemas estéticos do que históricos. Há também diferenças do ponto de vista poético ou formal. Um texto crítico geralmente é mais curto e pode dispensar certas referências ou citações. O argumento histórico-artístico requer um texto diferente, com outra relação com a tradição dos estudos das obras que analisa. Mas são todas diferenças, como se pode ver, de forma, e não de procedimento.

4.1) Você se considera qual dos dois agentes?

RN - Olha, até pelo fato de no Brasil não haver nenhuma grande tradição nem em história, nem crítica o que eu e várias pessoas fazemos, inclusive a Vera, é fazer um pouco os dois, porque a gente se vê meio forçado a também preencher lacunas que não foram preenchidas em relação ao século XIX ou começo do século XX. Existe, até hoje, no Brasil uma série de artistas que não foram estudados, então eu me vi meio forçado a ser um pouco os dois, a fazer a análise, na medida das minhas possibilidades, do século XIX e do começo do século XX (...). Agora, eu acho que isso é um pouco uma contingência brasileira, eu acho que alguns outros críticos fora do país, em geral dizer isso também era um pouco atrasado, num certo momento os EUA, no outro a Itália.

4.2) ... Aqui no Brasil a diferença entre os dois é difícil de enxergar, porque as pessoas começam a fazer um pouco de ambos...

RN - Acho que sim, acho que sim. Não sei se daria para pensar isso de forma ampla. Eu acho que, o Ferreira Gullar, o Mário Pedrosa, talvez tenham sido mais críticos propriamente. (...) É um pouco uma espécie de leitura da arte moderna que desemboca neles. Então, é como se fosse quase uma espécie de história crítica, no sentido de que tem uma dimensão muito forte. Agora, sei lá, pessoas como eu, Ronaldo, Paulo Sérgio, a Vera, enfim, muitas pessoas aqui no Brasil acabam sendo forçados a fazer uma revisão da nossa história ou moderna ou pré-moderna com vista que certas análises sobre os contemporâneos façam sentido. Em países em que a publicação, estudos, análises é mais densa, tem mais gente envolvida nisso, essas análises seriam desnecessárias. Aqui elas não foram feitas então, enfim não é nenhuma escolha, eu acho, nossa.

5. Todo o crítico estabelece alguma relação com o artista ou a obra de seu estudo. Como se constrói essa relação? De que forma fazem essas escolhas?

VB - Há milhares de formas possíveis. Posso apenas falar da forma como eu me relaciono com os objetos, que acredito ser a maneira mais honesta de relação com a arte e com o leitor dos meus textos. Citei Baudelaire e sua “ingenuidade” construída (imaginem se Baudelaire, cultíssimo, seria ingênuo... ser ingênuo para ele devia ser realmente um esforço considerável), porque gosto de me relacionar dessa maneira direta com o objeto artístico como uma presença. Presença sempre estranha, no sentido de algo que não posso captar, que escapa de mim, que me desafia. É claro que isso exige do objeto certa potência estética ou expressiva, que acaba delimitando as minhas escolhas. E, de certa forma, me faz correr o risco do ridículo, exigindo textos poeticamente comprometidos com a obra. Entre todos esses riscos, vou traçando minhas escolhas a partir desse embate direto, epidérmico com o objeto de arte.

6. Mario Pedrosa e Ferreira Gullar, que já foram citados, foram grandes nomes que redigiram artigos de arte para o jornal, cada qual construindo seus próprios critérios de avaliação. O caráter das críticas jornalísticas, no entanto, mudou drasticamente, tornando-se muito mais descritivas e superficiais. As críticas rigorosas desapareceram do jornal e da mídia comum? Ou foi o público de arte contemporânea que desapareceu?

RN - Acho que diminuiu. De uma forma geral os jornais passaram a escrever para um público muito mais amplo (...). Se você pegar um jornal dos anos 60, 70, por exemplo, e um jornal de hoje os parágrafos ficaram muito menor, os textos têm que ser muito mais claros, enfim eu acho que uma série de aspectos às vezes até determinados por critérios de vendagem, forçaram um pouco os trabalhos a se simplificarem. Sem dúvida isso levou a certo barateamento da crítica que às vezes ou é apenas analítica, noticia ou às vezes são trabalhos, artigos mais opinativos, mas enfim eu acho muito mais usado. Agora por outro lado nunca as artes visuais tiveram tanta presença pública no Brasil como têm hoje. Antigamente pouquíssima gente vivia de arte. No Rio eu acho que vocês sofreram um pouco com a perda da capital, a situação dos museus aí não é das mais favoráveis, mas aqui melhorou muito. Mesmo aí eu imagino. Então, eu acho que houve uma mudança, as pessoas têm lugar para escrever, folders de galeria, livros, enfim, tem mais gente escrevendo hoje, muito mais do que já tinha anteriormente, agora você tem toda razão em relação ao jornal especificamente, houve um problema.

VB - Realmente a crítica em jornal mudou muito. Mas acho que o jornal mudou muito. Hoje é tudo mais abreviado e a própria crítica ficou mais ligeira, mantendo apenas sua função indicativa. No caso das artes visuais nem temos aquele nomes meio icônicos como na crítica teatral e musical, aquela figura do crítico antipático que desgosta de tudo. Ficamos, em realidade, sem qualquer parâmetro cultural de valorização das obras, especialmente pelo próprio desmantelamento da crítica de maior circulação. Particularmente acho que a ditadura foi um golpe fatal num sistema que mal começava a engatinhar. Algumas poucas exposições importantes, museus que começavam a criar alguma tradição, críticos que mal haviam formulado critérios para a incorporação cultural dos trabalhos artísticos – tudo isso foi abortado por um bando de militares que viam na arte e na cultura uma ameaça ao sistema. Mesmo o badalado boom do mercado de arte nos anos 70, respondeu, como se sabe, aos critérios tradicionais de gosto e distanciaram dramaticamente o público da vitalidade criativa da época. Hoje em dia, parece que o sistema está se adensando, não apenas pela tradição adquirida pelas instituições museológicas, pela valorização comercial de algumas obras no mercado local e internacional, mas também por causa dos cursos universitários de graduação e pós-graduação, nos quais a crítica ganha novo e estimulante espaço institucional. Em termos numéricos absolutos, nunca houve tanto público para a arte. Um público com contornos vagos e indefinidos, formado por todo tipo de gente. Penso que fazer crítica para esse público é um desafio interessante e uma tarefa cultural de peso.

7. Nos anos 70, no Brasil e nos Estados Unidos, vemos artistas como Cildo Meirelles, Waltercio Caldas, Robert Smithson e Richard Serra atuando também como críticos dos próprios trabalhos. O que você pensa desse artista que escreve? Acha que ele modifica o papel do crítico de alguma forma?

VB - Como já disse antes, os papéis culturais no sistema artístico contemporâneo são lábeis e intercambiáveis. Muitos artistas começaram a escrever por desacreditar na crítica que era feita (no caso dos EUA, onde a crítica formalista tinha força), ou para suprir a sua falta (no caso brasileiro). Eram formas de atuação crítica e institucional. Isso aponta para um novo papel cultural do crítico: a ação critica torna-se imediatamente cultural. Não é mais possível a crença ingênua de que o crítico estaria fora do sistema cultural, falando a partir de um ponto de vista neutro em termos institucionais.

8. Qual o papel da universidade na construção do discurso crítico atual?

VB - Como já falei, acho que a crítica feita a partir da universidade é um campo novo e estimulante. Hoje há vários artistas, curadores e críticos que trabalham em universidades, dando aulas, fazendo pesquisa e orientando estudantes. São esses estudantes que poderão vir, a meu ver, a consolidar alguns valores culturais, a desafiar outros, a partir de critérios atuais. Afinal, só teremos uma verdadeira história da arte brasileira se esses fenômenos artísticos continuarem relevantes para o público de hoje, colocando novos problemas, permitindo interrogações relevantes para a nossa cultura.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

O Artista: Ricardo Basbaum

Artista Etc



Alunos:
Amanda Xavier,
Erika Macedo,
Letícia Saraiva, e
Luísa Espindola

21/07/2009


Introdução

O trabalho final visa à pesquisa sobre a relação do artista com o mundo público das artes. Uma análise das mudanças na arte e na crítica de arte no cenário da cultura globalizada, que conduz à necessidade de debater os processos atuais da comunicação da arte e do papel desempenhado pelos principais agentes legitimadores do sistema artístico, entre eles os museus, as bienais, o mercado de arte.
A pesquisa se realizou a partir da entrevista com o artista Ricardo Basbaum, professor da Uerj, crítico de arte, curador e autor de textos como: “Vivência Crítica Participante” e “O Artista como Curador”, em que defende a multiplicidade do papel do artista contemporâneo. Foi baseada na leitura de textos como: "Ato Criador" de Duchamp, "Inserções em circuitos ideológicos" de Cildo Meireles, uma entrevista de Carlos Zílio a revista Malasartes e dois textos de Basbaum citados acima.
Na pesquisa, verifica-se que o artista contemporâneo tem que ser muito mais do que criador de sua obra. O artista de hoje tem que procurar se envolver em todos os segmentos do sistema de arte, tem que ter contatos mais diretos com a crítica, o museu e a galeria, pois ao longo dos tempos as formas de institucionalizar um artista e suas obras se modificaram muito. Não é mais apenas o artista e a sociedade e sim o artista e a crítica, o museu e a galeria.
Nesta entrevista com Ricardo Basbaum podemos entender o papel do artista diante do sistema de arte e como essa relação se modificou ao longo dos tempos e qual o papel e a importância da sociedade na legitimação de uma obra. Basbaum também nos fala da força das Universidades no processo de formação artística.


O artista: Ricardo Basbaum

O artista Inicia seu trabalho a partir dos anos 80, numa perspectiva de investigação de diversas formas de linguagem, aproximando campo artístico e campo comunicativo, realizando performances, ações, intervenções, textos, manifestos, objetos e instalações. Sua formação inclui Licenciatura em Ciências Biológicas (UFRJ, 1982) e Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil (PUC-RJ, 1987).
Possui obras suas nos acervos do Museu de Arte de Brasília, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Coleção Gilberto Chateaubriand (Rio de Janeiro) e The Tate Collection (Londres).
Publicou diversos textos em revistas especializadas, no Brasil e no exterior. É autor de Além da pureza visual (Zouk, 2007), e dos livros de artista G. x eu (1997) e NBP x eu-você (2000). Organizou a coletânea Arte Contemporânea Brasileira – texturas, dicções, ficções, estratégias (Contra Capa, 2001). Colaborador dos livros The next documenta should be curated by an artist, ed. Jens Hoffmann, Frankfurt, Revolver, 2004, e Interaction: artistic practice in the network, org. Amy Scholder e Jordan Crandall, Nova York, Eyebeam Atelier e D.A.P., 2001, entre outros. Entre 1999 e 2003, foi co-diretor da iniciativa independente Agora - Agência de Organismos Artísticos. Co-editor da revista item, voltada para arte e cultura contemporânea. (sv)



Entrevista


1)De acordo com Duchamp, no Ato Criador, "o artista passa da intenção à realização através de uma cadeia de reações subjetivas. Sua luta pela realização gera uma série de conflitos que não podem e não são totalmente conscientes. E o resultado desses conflitos é uma diferença entre a sua intenção e a sua realização, uma diferença que o artista não tem consciência. Essa diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte”. Você concorda com esse ponto de vista? O artista contemporâneo poderia ser pensado nesses termos?

2) Em seu texto, Vivência Crítica Participante, você declara que o ser artista ou funcionar como tal, se quiser, não é conseqüência apenas de vontade e perseverança, mas de uma sutil negociação com vistas à inserção num campo de debates e jogo cultural, ou numa sociedade. Qual a relação, hoje, entre o artista, o mundo público das artes, o público e as instituições? Em seu texto "O artista como curador",você afirma que as funções dos artistas ultrapassam a posição de simples produtor de obras de arte. Você tem uma proposta do artista como curador, professor, crítico. Você poderia desenvolver mais essa proposta?

Ricardo Basbaum: É uma sugestão interessante do Duchamp. Todos os textos dele tem um tom provocador. Ele toca de uma maneira muito direta e até simples nesse problema entre o que é feito pelo artista e como isso é recebido pelo público. Na verdade mostrando que a obra não contém, ela um conteúdo que o artista delega a obra e aquele conteúdo está para ser exposto da mesma maneira que o artista colocou , da mesma maneira que a comunicação não é uma transmissão de uma coisa simplesmente, por exemplo, eu falo maçã. E essa maçã entra no seu cérebro como maçã. É muito mais algo que está ligado a uma tecla dos elementos, a comunicação tem uma performatividade, tem um jogo de contato, tem uma série de lacuna e vazios, então Duchamp está jogando com isso, está mostrando que a obra de arte que estamos nos propondo enquanto artista moderno e já apontando para uma arte contemporânea é tida pelo receptor da obra. A recepção de uma obra diz muito, não existe uma obra em que o artista diz finalizada, pronta e que esse público simplesmente, recebe o pacote de informações que todo é mediado por certo tipo de som. Não é mais o artista e a sociedade simplesmente, mas sim, o artista e o museu, o artista e o circuito, o artista e o mercado, o artista e a crítica, e a crítica e a história, sobretudo que a arte contemporânea lida com o público de um modo muito nobre, além de tudo, dentro de um espaço ligado pela cultura como a música popular, ou até mesmo o cinema, como música. O campo da arte visual depende de contatos muito mais intensos em menor escala, mais lentos, do que a arte popular e a arte do cinema.
Hoje tem no Banco do Brasil a exposição "Virada Russa" que tem certas obras que certamente não voltarão para cá tão cedo, então se você não tem um contato direto não vai entender e perceber o que é aquilo. É muito mais lento e mais intenso. O artista depende, também que estar sensível, ser capaz de problematizar certas demandas da sociedade e isso produz um interesse meio volátil. Antes de atender ao interesse do público é muito mais encontrar um ponto de contato.
Essa idéia do artista etc. vai mais do que simplesmente ficar no atelier fechado. Isso deve muito mais a perceber que para, enquanto dever de produzir algo, enquanto artista frente a sociedade, não depende simplesmente de um acolhimento ou de um sim da sociedade- aceitamos você- mas muito mais desse trabalho de construir esse lugar e negociar essa recepção, mostrando uma provocação qualquer. É preciso construir um espaço para o trabalho, e esse espaço não construímos só na produção da obra no atelier. Você precisa compreender que seu trabalho possui uma demanda crítica, precisa entender que precisa trabalhar nesse ambiente também, produzir textos que defendam o seu trabalho, articulem o seu trabalho enquanto artista. É preciso compreender também que construir a intenção do trabalho, isso se aproxima só trabalho do curador. Se associar com outros artistas, formando grupos, um coletivo, um espaço de trabalho conjunto e aí você se aproxima do curador, no sentido de construir eventos. Não ficar esperando que as pessoas te chamem para fazer as coisas, mas já construir uma situação, você já se coloca.
Então, é muito mais essa idéia do artista que pensa , é perceber esses outros campos é muito mais a realidade do artista contemporâneo do que achar que o artista fica isolado no atelier. Precisa compreender que o trabalho precisa de uma discussão crítica, um discurso histórico, precisa construir um espaço para o trabalho de uma maneira que a gente não afirme muito, uma espécie de uma ação constante para construir a intenção do trabalho.

3) Cildo Meireles, em seu texto "Inserções em circuitos ideológicos" fala sobre a noção de público que foi substituída pela noção de consumidor, que é a parte do público que teria poder aquisitivo. Além de isso tornar a arte pouco acessível, a busca do público por entretenimento hoje em dia a torna mais comercial. Você percebe, como artista, a mudança no perfil do público? Até que ponto o público consumidor afeta a produção artística?

Ricardo Basbaum: Há uma mudança sim. As artes plásticas pertencem ao mundo das Belas Artes, ali voltado para uma corte, mas se dissolveu na era moderna, ficando um certo retoque , uma espécie de lugar na esfera burguesa enquanto ao mesmo tempo a música popular, o cinema, como atividades industriais conquistam um público na velocidade de contato, um acesso aos meios de comunicação que parecem que deixam as artes visuais um pouco para trás nessa questão da velocidade. Mas a partir da Pop Art, a partir da Segunda Guerra Mundial, isso começa a virar um pouco, as Artes Visuais perdem aquele lugar mais protegido , junto a uma esfera de reserva, o espaço mais protegido das Belas Artes e rompe completamente. Passa a confrontar com a economia, dentro da cultura no seu estado mais direto, no contato com o jogo de capital mais agressivo, as galerias percebem que têm que usar estratégias de publicidade também, entra no campo da cultura como qualquer outro, é sediada da mesma maneira pelos meios de comunicação, só que não vai responder da mesma maneira como a música e o cinema.
Então, eu acho que as Artes Visuais ainda estão procurando lugar nessa economia da cultura pós uma "arte de consumo de luxo". Além de que a Arte Visual ainda é uma peça única e isso custa muito caro, um filme se multiplica centenas de cópias e um disco de música também, mas quando é única custa muito caro dentro de uma economia que barateia só quando aquilo se multiplica, então, será um bem de consumo sempre caro, mas para consumir uma obra de arte você não precisa ter ela materialmente em casa, é como temos um sapato, ela pode ficar no museu e você consome da mesma maneira.Nesse aspecto as Artes Visuais tem uma camada muito elaborada sobre o consumo material, mas o contato já está bastante elaborado e a gente pode ter esse contato com a obra de maneira muito rica, em produção de pensamento, pensar sobre o conceito de arte. Tudo isso a obra nos proporciona, e talvez o cinema não demande tanto. Eu não preciso levar uma obra para casa para consumi-la.
No sentido do que é produzido não, mas ajuda a pensar a maneira de recepção, de mediação sua e percepção da obra. No Brasil é importante todos os museus terem um departamento técnico-educacional, já que aqui não tem museus, não tem acervos, então as pessoas não têm como conviver com aquilo mais tempo, aparece de repente... É preciso construir esse acesso, isso é uma demanda do público. Esses eventos de grande escala, espetaculares, como a bienal, que também é para suprir uma ausência dos museus. Acho que o público não determina tanto a produção, mas sim a maneira de organizar essa recepção.

4) Você é professor da UERJ e participa da formação de futuros artistas e agentes do sistema de arte. Como você vê o papel da universidade na formação do artista contemporâneo no Brasil?

Ricardo Basbaum: A formação acadêmica do artista é muito importante , ela de certa forma substitui a antiga "Escola de Arte". Mas a Universidade não garante que a pessoa que se formou será artista, não depende apenas de um diploma, depende de todo esse jogo que já comentamos antes- como a sociedade, essas negociações. O que a universidade tem que eu acho muito importante é esse espaço de encontro e de debates. Ela nesse sentido é estimulante, um espaço de troca de idéias, de contatos, provocações, criando uma atmosfera de inquietação.

5) Você foi um dos fundadores e participou ativamente do Espaço Agora Capacete. Ele era um espaço de circulação de idéias e debates e foi importante para a formação de desenvolvimento do trabalho de inúmeros artistas. Você poderia falar dessa experiência?

Ricardo Basbaum: O Agora Capacete na verdade são dois grupos, o Agora e o Capacete. O Capacete está ativo até hoje. O Agora se dissolveu em 2003. O Agora já tinha uma experiência anterior, ele era composto por três pessoas, contando comigo. Nossos encontros com o Capacete foram muito interessantes, nós tivemos um espaço para trabalhar em conjunto e pensar, fazer uma intervenção no circuito de arte local, marcar uma diferença. Criar um espaço em que a gente pudesse construir exposições, promover debates, produzir uma conversa crítica. Foi bastante interessante, porque os dois grupos atuando junto, e cada um com suas referências, cada um com seu tipo de produção e se encontravam em um equilíbrio. A idéia era criar um espaço de fomento para a produção, produzir idéias, criar um espaço de rede, mexer com a comunidade artística local, aglutinar as pessoas. É muito mais uma vontade de construir a intenção do trabalho. Faz parte das estratégias de colocar a própria obra para a sociedade. Construir as relações que fazem parte do trabalho. O encontro da produção com a cidade do Rio de Janeiro

Referências Bibliográficas:

DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador. In BATTOCK, Gregory. A nova Arte. São Paulo, Editora Perspectiva. 1975.

BASBAUM, Ricardo. O artista como curador. In FERREIA, Glória.( org.) Crítica de Arte no Brasil: Temática Contemporâneas. Rio de Janeiro, Funarte. 2006.
_________________. Vivência Crítica e Participante. Revista Ars. São Paulo, ECA-USP. N 11.2008.

MEIRELES, Cildo. Inserções em Circuitos Ideológicos. In HERKRNHOFF, Paulo, MOSQUEIRA, Geraldo, CAMERON, Dan. Cildo Meireles. São Paulo, Cosac & Naif. 1999.

ZILDO, Carlos.In; Escritos de Artistas dos anos60/70. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.2006

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Entrevista com o Crítico Fernando Cocchiarale


Entrevista com o Crítico Fernando Cocchiarale


Alunos:

Alice Evangelista

Filipe Farias

Frederico Lobianco

Giovana Adoracíon








ENTREVISTA COM O CRÍTICO DE ARTE FERNANDO COCCHIARALE




LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO SUA EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL, COMO VOCÊ CONCEITUARIA A CRÍTICA DE ARTE?

FC- Eu tenho sérias dúvidas quanto a essa função ainda ter sentido hoje em dia. Eu acho que a crítica de arte foi substituída pela curadoria. Quero dizer, embora o curador escreva textos, eu não acredito mais na função da crítica de arte tal como ela se delineou no Iluminismo, no século XVIII, a partir de Diderot, que é considerado o primeiro crítico de arte. Até a crítica que surge na passagem do século XIX para o XX, a idéia é de que existe um agente no mundo da arte cuja função é analisar ou criticar uma determinada produção, enquanto a mediação entre o artista e o público, separados pela encomenda, coloca o artista e o público em contato, então qualquer problema era resolvido posando pro cara. Depois que surge o mercado e que surge esse distanciamento entre o artista e a encomenda, e ele agora passa a trabalhar na hora em que ele quiser, quando ele quiser, é livre e criativo, ele se distancia do seu público que agora se esconde nas galerias, e a crítica surge como uma mediação. Sobretudo no Modernismo, onde a renovação de linguagens é muito intensa. Eu não sei se essas condições histórico-sociais se mantém hoje em dia. Eu acho que hoje em dia quando eu sou chamado pra escrever um texto, eu não sou chamado pra criticar. até porque nenhum artista vai me chamar para escrever num catálogo pra criticar. eu sou chamado para atribuir um sentido, para dizer que aquela obra tem um sentido, que trabalha determinadas questões. Isso não é crítica! Isso é uma outra função. Então eu tenho dúvidas se as condições históricas que levaram ao surgimento da crítica de arte são as mesmas do final do século XVIII, do final do século XIX, eu tenho certeza que não.

NA HISTÓRIA DA ARTE BRASILEIRA É MUITO CLARA A IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA. O SR PODERIA FALAR UM POUCO SOBRE ESSA RELAÇÃO ENTRE CRÍTICA E HISTÓRIA DA ARTE?

FC- Eu acho que a crítica, não só na História da Arte brasileira, mas a crítica, quando começa a exercer sua função, produz o que chamamos de pesquisa de fonte primária. Quando um crítico escreve sobre o trabalho de um artista jovem, sobre quem ninguém nunca escreveu, que um dia se tornar um artista importante, ele está criando fontes de informação primária para um investigador que vá fazer uma tese ou uma dissertação sobre esse artista. Numa partida histórica que definia as teorias da arte numa certa hierarquia, a estética era a maior de todas porque era a mais genérica e a menos específica, e a menos importante e a mais específica de todas era a crítica. Então, a crítica acabava servindo de matéria prima pro historiador da arte e pro esteta. Hoje em dia, digamos, um pesquisador que vá fazer uma tese vai ler um catálogo, que eu não acho que seja um texto crítico.


ATRAVÉS DE LEITURAS, NOTAMOS NOS CRÍTICOS UMA CERTA TENDÊNCIA A ESCOLHER DETERMINADOS ARTISTAS E PASSAR A DAR MAIOR ÊNFASE À OBRA DESSE ESCOLHIDO. ESSA TENDÊNCIA REALMENTE EXISTE EM VIRTUDE DE UM SENTIMENTO DE EMPATIA ENTRE CRÍTICO E OBRA? COMO A ESCOLHA DO ARTISTA "PREFERIDO" SE DÁ PARA O SR?

FC- Eu não se a escolha é de um artista, mas existe uma certa mitologia que vem inclusive da origem da palavra “crítica”, que vem de crise, lá do grego e quer dizer separação. Então surge a idéia do pensamento crítico, de que você só pode criticar uma situação quando você não está envolvido com ela, se você está de fora, como se o exercício da crítica tivesse partido da neutralidade. Agora, isso é totalmente utópico. Todos os grandes críticos são comprometidos com tendências especificas de um movimento específico. Mário Pedrosa era visivelmente comprometido com o Concretismo, com o Neo-Concretismo e com o Abstracionismo. É justamente essa paixão e esse tesão que fazem os grandes críticos. A idéia de que o crítico está “com o rabo preso ali”, ora, está com o rabo preso por quê? Ele gosta do trabalho, ou então ele gosta de quem o está fazendo, mas normalmente, por exemplo, eu tenho afinidade com determinadas produções e não tenho com outras, isso é normal. Sobre qual delas vocês acham que eu vou escrever melhor? A que eu tenho afinidade, tenho o rabo preso, ou a que eu não tenho afinidade? A intenção crítica é um mito iluminista, não existe. Os melhores críticos são aqueles comprometidos àquela leitura, não à uma pessoa, mas à questões representadas naquele trabalho.


ATUALMENTE É RARA, SE NÃO INEXISTENTE, A PUBLICAÇÃO DE CRÍTICAS DE ARTES NOS (GRANDES) JORNAIS BRASILEIROS, O QUE SE OPÕE FORTEMENTE À CULTURA DE PUBLICAÇÃO DAS CRÍTICAS NA DÉCADA DE 1970, POR EXEMPLO. EM SUA OPINIÃO, O QUE PROVOCOU ESSA EXTINÇÃO DA CRÍTICA IMPRESSA NOS GRANDES MEIOS DE COMUNICAÇÃO NO PAÍS?

FC- eu não vejo nenhuma necessidade de crítica. Eu vejo, por exemplo, hoje em dia no Globo, com a reestruturação do Segundo Caderno, colocaram a Ligia Duarte e a Marisa Flora - que eu acho uma crítica excelente, adoro os textos da Marisa - mas o textos da Marisa, não são textos críticos, são textos que emprestam sentido. Eu acho que quando alguém escreve sobre um trabalho, está havendo uma outra criação em cima da criação do artista. E o encontro dessas duas produz determinadas faíscas que fazem sentido. É isso. Agora, um crítico no jornal que diz ‘a exposição é uma porcaria, porque o contraste entre as complementares...’ ninguém fala mais de forma, ninguém fala mais de cor; a crítica de arte que tinha sentido é a da era formalista que é o marco da crítica e do pensamento artístico modernista. A gente não está mais nisso. As coisas são muito mais confusas hoje. Então não é que eu pense que a imprensa não deva falar, eu prefiro ler o que Marisa escreve do que ler o que um jornalista escreveria, mas nem por isso ela é crítica. Eu acho que os jornais não tem crítica porque não interessa mais ter. e acho, por exemplo, que no The New York Times tem por tradição, isso não tem mais a importância que tinha antes. Você quando lê a Barbara, que é uma crítica de teatro, eu sempre tenho a impressão que estou numa maquina do tempo, dentro do passado. Quando a pessoa está imbuída de que ela é crítica ela acha que tem que detonar tudo o que escreve e torna o Pedro DiLara na crítica de arte. Realmente, aí não dá.


O SR JÁ ATUOU EM JORNAIS COMO CRÍTICO?

FC- Muito rapidamente. Mas não há muito tempo, há cerca de cinco anos atrás, no Jornal do Brasil. O Lauro Cavalcanti teve a idéia de chamar a mim, à Marisa (Flora) e ao Rafael Cardoso pra que cada semana um de nós escrevesse uma matéria de graça para o jornal, mas então o Ziraldo entrou, mudou e nós fomos demitidos, quer dizer, fomos descontratados, já que não ganhávamos nada mesmo. Então a minha participação foram 3 artigos e mais nada. Como eu posso dizer que isso é crítica? Eu tenho 300 textos publicados em livros, catálogos e etc, mas não são textos de crítica. Veja, com isso eu não estou dizendo que a atividade do teórico de arte seja uma atividade complacente, que eles não fazem nem criticam o trabalho dos outros, apesar de eles não serem críticos, tal qual ela foi estabelecida a partir do século XVIII, XIX. Essa função é a que eu acho que não pode mais ser pensada individualmente, mas evidentemente, eu tenho opiniões críticas de arte e acho certas produções horríveis, e tenho minhas razões pra isso.

ENTÃO HOJE EM DIA SÓ É EXPOSTO O QUE O ARTISTA VÊ COMO POSITIVO EM SUA OBRA?

FC- É, mas os artistas jovens, hoje em dia, abriram mão dessa prerrogativa. Eu, por exemplo, se tivesse que publicar um trabalho sobre um artista e tivesse que entregá-lo na sexta-feira e na sexta-feira estivesse insatisfeito com esse trabalho, ainda assim ele seria publicado. Mas o artista, em princípio, só deveria expor aquilo que ele realmente tem certeza. Mas se os artistas hoje acham que qualquer idéia que eles tem, sobretudo os jovens, é boa, eles vão se ferrar por causa disso. Um médico não pode dizer ‘essa cirurgia que eu não fiz tão bem está anulada, não vou mostrá-la’ porque a pessoa, o resultado está ali. Mas o artista pode fazer isso. Os aristas trabalham com idéias, porque as idéias são idéias, agora a forma como elas serão mostradas tem a ver com a experiência, com a poética do artista e o artista que só tem idéias, só vai executá-las na hora de mostrá-las. Então muitos não tem esse discernimento e acham que fatalmente porque uma idéia é boa, as outras também serão e não é assim. Então eu acho que o artista deveria ser mais autocrítico

COMO INICIANTES NO ESTUDO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ARTE, O FATO DE ALGUMAS OBRAS SOMENTE ADQUIRIREM VALOR NO MERCADO MUITOS ANOS APÓS SUA CRIAÇÃO NOS CHAMOU A ATENÇÃO (TENHA EM MENTE O CASO DE VAN GOGH). QUAL O SR DIRIA QUE É O PAPEL DA CRÍTICA NESSE PROCESSO? EM SUA CARREIRA TEVE ALGUMA EXPERIÊNCIA COM ESSE TIPO DE DEFASAGEM ENTRE LANÇAMENTO E ACEITAÇÃO DA OBRA?

FC- (Vocês sabem que a arte é um conceito do século XVIII, certo?) a idéia de artista individual, embora já existente na renascença, só ganha valor quando a arte se separa do artesanato nos textos de Kant e de outros teóricos, sobretudo da Alemanha no final do século XVIII, então nessa situação em que o artista é valorizado ou não antes da invenção do conceito de arte, a valorização tardia da obra não era um problema. Mas a partir do momento em que a arte é inventada, o problema passa a existir. Por exemplo, artistas como Botticelli não tinham grande reputação na renascença. Van Gogh não vendeu nada! Então desde que a arte foi inventada e participa de um mercado, você pode imaginar que o mercado valoriza em um determinado momento, coisas que em outro não valorizou. Em 1968 eu estava no clássico, no Andrew’s e o Frederico Moraes foi fazer um discurso: ele detonou Magritte e colocou Mondrian nas alturas. Hoje em dia, provavelmente, ele não detonaria Mondrian e elogiaria Magritte, mas Magritte não seria detonado como foi. Então eu acho que isso só mostra que, não só as obras se escrevem numa historicidade, mas que o próprio texto teórico é também um “ismo”, e que vai ser substituído, como foi o formalismo. E que as teorias da arte são tão selecionadas pela história quanto a própria produção artística. A teoria não é um lugar neutro, acima de circunstâncias, onde o cara fica revelando verdades sempre da mesma varanda. A teoria é uma coisa que muda. Eu, por exemplo, hoje tenho dúvidas se a arte ainda deve ser tratada como linguagem. Pensar arte como linguagem era uma coisa modernista, face a uma produção abstrata que era entendida se fosse pensada como linguagem. Se não fosse, ela não faria sentido. Hoje em dia nada mais disso é válido. Eu não sei nem se acredito em arte mais, eu sou cheio de preconceitos. Mas é porque é assim mesmo, eu não acredito na permanência de questões acima das épocas em que certas coisas são produzidas, certas coisas são pensadas e ditas. Tudo isso tem um arcabouço histórico. Se mudou a produção, se a autoria individual está em crise por causa dos coletivos e o artista pode trabalhar as vivências subjetivas dele e do coletivo ao qual ele pertence, não se pode e não se deve esperar que a crítica continue greenbergianamente falando de composição, de forma. Ou a teoria muda ou o teórico se enterra junto com tudo aquilo que continua defendendo.

COMO SE DÁ ESSE PROCESSO, SABENDO QUE ALGUMAS OBRAS ATUAIS NÃO SÃO VALORIZADAS MAS QUE SERÃO FUTURAMENTE?

FC- É relativo. Você vê, por exemplo, Mondrian. Eu sempre ouvi falar de Mondrian do ponto de vista formal. A uns 5, 6 anos atrás, eu me lembro de uma curadora jovem, com menos de 30 anos, falou de Mondrian para um grupo no qual eu estava, e ela falou de blabla, que era teosofista, o que é verdade. Então, por exemplo, hoje em dia com essa coisa do pós-colonialismo, do pós-surrealismo, do pós-modernismo, não interessa saber se a arte é de gênero, se é de mulher, se é de gay. É claro que num mundo desse você não pode falar de forma, não pode falar de conteúdo. Você tem narrativas. Tudo muda, tem que mudar a teoria também. E pensar que a crítica, que é uma função universal pra explicar forma e linguagem, e que tem sentido exatamente igual ao que ela tinha quando surgiu a duzentos anos atrás é de uma ingenuidade enorme.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

O Artista Contemporâneo

Na contemporaneidade as funções do artista ultrapassam as barreiras de simples produtor de obra de arte, sendo assim, o artista precisa formular estratégias de ação dentro do Circuito de arte.
Para falar incisivamente sobre esse assunto, nada melhor que a análise feita pelo próprio artista. Desse modo, essa entrevista com a Ducha (artista, curador, professor) nos revelou, sobretudo, uma visão muito particular que o próprio artista possui dos agentes do Mercado de arte e porque não dizer do próprio Circuito de Artes em si.


Entrevista com o Museólogo Diogo Maia da Fundação Eva Klabin

Arte e Institucionalização


Entrevista com o Museólogo Diogo Maia da Fundação Eva Klabin



Alunas: Bruna Bolzan; Edilaine Lima; Elaine Frango; Juliana Zarur e Kazzy Emanoelle
Professora: Martha Telles
Entrevista realizada em: 22/06/2010; Local: Auditório da Fundação Eva Klabin





Diogo é museólogo da fundação Eva Klabin, graduado no curso de museologia da Universidade do Rio de Janeiro.
Trabalha realizando visitas guiadas, catalogação de obras e conservação do acervo da fundação.

- Qual foi a sua trajetória profissional até chegar à fundação Eva Klabin?
Eu fiz faculdade de museologia na Uni-Rio, iniciada em 1999; estagiei na Casa de Rui Barbosa por aproximadamente dois anos e em 2002, eu vim para a fundação Eva Klabin, também como estagiário. Quando eu me formei, em 2004, assumi o cargo de museólogo contratado.
- Quais são as áreas de atuação da museologia? Como se dá a formação desse profissional?
O curso de museologia já existe há muitos anos no Rio de Janeiro, mas nos outros estados é comum encontrar pessoas trabalhando na área, mas que não são exatamente museólogos – alguns fizeram especialização na área. Mas hoje em dia estão surgindo cursos em outras regiões e o campo de trabalho é bem vasto: eu estudei muito história da arte para orientar as visitas guiadas, trabalho também com conservação das obras e o acervo daqui é muito extenso, nós temos mobiliário, prataria, quadros, esculturas pinturas... Aqui nós não fazemos trabalho de restauração, fazemos o trabalho de conservação e higienização das obras; a catalogação do acervo também é realizada por nós e é preciso estudar bastante para conseguir diferenciar técnicas de pintura, tipos de mobiliário...
- Por que vocês não fazem restauração aqui?
Na faculdade de museologia nós não temos essa cadeira, nós só temos a conservação, ou seja, estudamos a prevenção contra a deteriorização da obra.
Aqui nós não temos restauradores especialistas, como,por exemplo, um restaurador de pintura inglesa, um especialista em restauração de pintura francesa, nós evitamos que a obra chegue ao ponto que precise ser restaurada constantemente. Quando a gente precisa que uma obra seja restaurada, contratamos um profissional especialista para realizar o trabalho.
- Há uma política de aquisição de novas obras de arte por parte da fundação?
O acervo é permanente e foi montado pela Eva Klabin. Trata-se de uma coleção muito particular, pensada pela Eva Klabin e não caberia interferir nela comprando novas obras. A organização das obras de arte segue o gosto dela e mexer nisso – comprando novas obras – é mexer no sentido do museu.
A gente tem uma política de empréstimo de obras de arte para exposições. Há pouco tempo teve uma exposição importante do Taunay e nós emprestamos dois quadros desse artista, também emprestamos um quadro do Lazar Segal recentemente, mas a gente não recebe obras de outros museus.
O que nós temos aqui é o projeto Respiração: artistas contemporâneos são convidados a fazer intervenções no acervo da Eva Klabin. São obras específicas para a fundação e essa é a maneira de mexer na estrutura do acervo da casa, por isso o título do projeto é Respiração, é uma respiração dentro de um acervo tradicional e permanente.
O público que vem buscando ver os quadros bonitos, a prataria e esculturas antigas, acaba entrando em contato com a arte contemporânea e aqueles que vem atraídos pela novidade da exposição contemporânea podem conhecer o acervo fixo.
- Como se dá o diálogo entre as exposições contemporâneas e a exposição permanente? São realizadas em salas diferenciadas?
Não, o curador aqui da fundação, o Márcio Doctors, convida alguns artistas – normalmente é um artista por edição, mas na próxima intervenção que será inaugurada nesse sábado, serão duas artistas – e esses artistas têm liberdade de escolher a sala em que querem trabalhar e qual o tipo de intervenção que querem fazer. Não há uma sala reservada para essas exposições, a intenção é criar um diálogo entre artes do passado e a arte contemporânea.
- Você poderia falar um pouco a respeito dessa intervenção que será inaugurada no Sábado?
Essa é a décima primeira edição do Projeto Respiração e duas artistas foram convidadas: A Daniela Thomas e a Lílian Zaremba. A Daniela Thomas vai fazer um projeto chamado Substituições (ela já retirou algumas obras do circuito da exposição – que fazem parte do acervo permanente – e no local onde estariam, foram colocados aparelhos de reprodução sonora. A artista convidou pessoas para que descrevessem as obras de arte, então, na verdade, o visitante da exposição não vai ver a obra de arte, mas vai escutar a descrição daquela obra e acabará imaginando como a obra seria. A Lílian Zaremba também vai apresentar um trabalho sonoro: ela fez umas gravações e aproveitou uma entrevista da Eva Klabin, na verdade é um depoimento da Eva Klabin no último ano de vida dela; A artista pegou trechos desse depoimento e fez uma edição. Eu ainda não vi o resultado e não sei como ficou.
- Como a fundação Eva Klabin se insere no Sistema de Arte? Quais são as fontes que fomentam essa Instituição? Vocês recebem algum incentivo financeiro do Governo?
A Eva Klabin deixou tudo bem esquematizado. Ela criou a fundação e quando ela faleceu, todos os bens dela foram revertidos para a fundação e são esses recursos que mantém a fundação. Eventualmente, existem alguns eventos que são patrocinados (muitas vezes até pela indústria Klabin). Nós temos concertos que recebem patrocínio; às vezes, somos contemplados por um ou outro edital e conseguimos verbas para determinadas exposições, mas não é sempre não.
- A Eva Klabin não teve filhos, mas existe alguém da família que esteja ligado à fundação, que se interesse pela manutenção da fundação?
É, ela não teve filhos e a irmã dela também não teve filhos, mas ela tem primos... O presidente da fundação – Doutor Israel Klabin – é primo dela... Então a família continua presente e, de certa forma, todos apoiaram a idéia da fundação desde o início.
- Paul Valéry critica, no texto O problema dos museus, a política de exposição do acervo museológico: “algo de insensato resulta dessa vizinhança de visões mortas. Elas se enciúmam umas das outras e disputam entre si o olhar que lhes aporta a existência.” Qual a política de exposição do acervo da fundação Eva Klabin?
A intenção da Eva Klabin foi criar um acervo que reunisse exemplares da história da arte. Nós temos uma mini-história da arte, uma coleção enciclopédica, que tenta recriar a história da humanidade. Ela tentou reunir obras dos principais períodos da história e das principais civilizações. Nós temos Egito, Grécia, Idade Média, Renascimento, Renascimento Flamenco do séc. XVI, obras de arte da Holanda do séc. XVII, Barroco italiano, Inglaterra do séc. XVIII e a coleção pára no séc. XIX. E realmente nesse período a arte era externada por meio de objetos, quadros e se você for comparar com a Arte contemporânea, a arte contemporânea – não necessariamente – mas há uma tendência a privilegiar o conceito e não o objeto. Nessa intervenção que iremos inaugurar sábado, por exemplo, as obras são sonoras, não há um objeto em si.
A intenção dela era essa, ela decorou a casa com obra de arte, mas as obras são dispostas de certa maneira isoladas, não há acúmulos de quadros de cima a baixo em uma parede Não é tão entulhado assim. Cada sala é pensada, seguindo, claro, a história da arte. A casa dela está bem decorada.
Com essas intervenções de arte contemporânea a gente traz a coleção dela, digamos, para o século XXI. Uma coleção que parou no séc. XIX é, de certa forma, trazida para o séc. XXI.
- A organização que a Eva Klabin criou dentro da casa seguiu um ideal bastante particular, ela foi selecionando locais para as obras seguindo um gosto particular. Essa organização foi mantida ou foi modificada com o objetivo de seguir a história da arte ou uma cronologia?
A Eva Klabin nomeou todas as salas e essa nomeação é conservada. Então já existia a sala Renascença, por exemplo, onde predominam quadros da Renascença Italiana; já existia a sala Inglesa, onde predominam obras da Inglaterra. Na sala de jantar temos todos os quadros holandeses do séc. XVII. Então. Ela já seguia essa linha de reunir em uma mesma sala, obras de um mesmo período, ou mesmo estilo.
Depois que A Eva faleceu, a casa ficou fechada por um tempo, até que foi nomeado o primeiro curador da casa, que deu uma reorganizada na coleção – mantendo, basicamente, a mesma disposição escolhida pela Eva Klabin, só que talvez ele tenha dado um sentido maior a coleção dela, realocando certas obras e tornando mais clara essa idéia dela de recriar períodos da história da arte. Por exemplo, na sala Renascença, já existiam as vitrines que recriam os continentes, mas na vitrine pré-colombiana poderia haver, vamos supor, um vaso chinês, que foi realocado na sala chinesa. A organização dela era um pouco mais misturada, o que pode ser percebido por fotos antigas da casa, mas a maior parte da organização do acervo foi mantida tal como foi idealizada pela colecionadora.
Na sala chinesa, existem obras de todo o sudeste asiático, embora ela tenha nomeado de sala chinesa; A Renascença tem vitrine com obras Egípcias, havia uma mistura, mas ao mesmo tempo um predomínio de objetos filiados ao período que nomeia a sala. Lá na sala inglesa nós temos estatuetas da coleção de tanagras, que são umas estatuetas gregas, de antes de Cristo.
- Essa coleção dela foi pensada desde o início visando elaborar um acervo a ser mostrado ou visando uma venda futura?
A gente sabe que ela nunca vendeu uma obra de arte da coleção. Tudo o que ela comprou, ela manteve aqui na casa. Ela nunca teve esse pensamento voltado para o mercado: “posso vender isso agora que está valorizado e comprar outra coisa”.
Na década de 60, ela fez uma grande reforma aqui na casa, ela ampliou salas, criou o auditório e nessa reforma ela pensou em algumas vitrines para exibir e organizar melhor a coleção (são as vitrines que ainda temos hoje em dia). Desde a década de 70, ela já tinha uma pessoa catalogando o acervo, já tinha uma museóloga que trabalhou para ela. Então, ela já tinha essa preocupação de manter esse acervo e já tinha a intenção de abrir a casa ao público, como museu, em algum momento.
No livro das taragras, de 1983, já tem lá “Fundação Eva Klabin, em formação”. Ela já estava criando a fundação, embora ela só tenha sido oficializada em 1990. A Eva Klabin morreu em 1991.
- Vocês desenvolvem alguma política educacional na fundação?
A gente tenta receber escolas aqui, mas não há muita procura; recebemos mais grupos de faculdades, como é o caso dessa turma que chegou ainda há pouco. Nossa ação educativa consiste na visita guiada, aliás, todas as visitas aqui são guiadas.
Nós convidamos escolas, mas poucas delas aparecem, não sei se pelo fato da localização da fundação não ser das mais fáceis (se bem que tem uma escola aqui na esquina que não traz os alunos).
- Diogo, o site da fundação informa que vocês realizaram um projeto que aliava teatro à visita guiada. Esse projeto ainda existe? No que consistia exatamente?
Esse foi um projeto de uma produtora que usou o espaço da fundação – foi um projeto patrocinado – e teve uma temporada de aproximadamente quatro meses. Era uma peça de Teatro que falava de um assassinato – era uma peça de mistério – e utilizava o primeiro andar da casa como cenário. Começava no jardim e depois passava pelo hall... O público circulava pelas salas da casa – o que não é propriamente uma visita guiada.
A idéia de representar uma peça de mistério tem tudo a ver com a Eva Klabin – que era fã de mistério, tinha os livros da Ágata Christie – e é interessante ver a peça misturada com esse acervo.
Não é que não haja interesse de realizar projetos como esse, mas este espetáculo já acabou, tinha duração prevista de alguns meses, não se tratava de um projeto fixo da casa, como é o caso da visita guiada.
Além do acervo nós oferecemos muitas atividades: concertos, balés, exposições de arte contemporânea, palestras – hoje, por exemplo, teremos uma palestra da Glória Ferreira – apresentações de pesquisas de pós-graduação.